João Lobo Antunes, como diria Pessoa, “tinha o mundo dentro
dele”. Foi
o primeiro Lobo Antunes que conheci e li. Li “Um modo de ser” no ano em que foi
galardoado com o Prémio Pessoa, em 1996. Depois desse, quase todos os livros.
Conheci a realidade de NY através dele, e Washington Heights, muito antes de
achar que algum dia frequentaria aquelas ruas. Foi com ele que descobri o meu
amor por NY. Foi assim que escolhi a universidade de sonho em NY e que achei
que seria apenas isso: um sonho. E foi através dele que quis ir viver para lá. Através
dele aprendi antes de ser uma new yorker
“emprestada” a differença entre a opera e o museu. The Metropolitam Opera e The Metropolitan
Museum of Art. A sigla Met. Quando finalmente
fui para NY, para Columbia, mostraram-me
a cadeira com o nome dele no Neurological Institute of NY. Através
dele apaixonei-me por Edward Hopper, principalmente aquele homem numa noite sob
a sombra da luz (Night shadows). E
depois disso fui a todos os museus de NY que têm obras do Hopper: Met, Whitney,
MoMa e Brooklyn Museum. O americano que mais pintou o quotidiano. Com ele
descobri a humanidade que deve existir em todas as profissões tão bem descrita
na “Morte de Ivan Ilitch” de Tolstoi. O livro que talvez ele mais citava. O
livro que todos os médicos deveriam ler. E o livro que eu mais li e ao qual
volto sempre. Com o Professor aprendi que as mãos são a marca do ser humano.
Aquilo que talvez mais nos distingue das outras espécies. As mãos, essa parte
anatómica que denuncia a nossa idade. Aquela que ninguém consegue fazer
regredir os anos. A mão que é o instrumento de trabalho mas que também afaga e
consola. O peso da mão. E a beleza e delicadeza que as mãos cirúrgicas têm. Já
apreciaram a beleza e a dança das mãos numa neurocirurgia. Os gestos delicados,
o detalhe, a leveza? Já apreciaram as mãos de um neurocirurgião? Já pararam
para apreciar o quanto umas mãos bonitas são talvez das mais belas partes do
corpo humano?
João Lobo Antunes foi
sempre um aluno brilhante. Dizem que fazia tudo bem. Tinha qualidades
invulgares para um homem só. Escrevia exemplarmente bem, era um acérrimo
leitor, apreciador de todas as artes e tinha uma cultura invulgar. Para além de
tudo isso, foi o mais brilhante neurocirurgião da sua geração. Como ele disse
um dia, aqui é famoso mas foi para NY onde era um “small fish in a little pond”. Há maior banho de humildade do que
este? Exaltava como maiores virtudes do ser humano a compaixão, decência e
carácter. Conheci, não pessoalmente a sua fama como neurocirurgião. Mas sobre o
que posso opinirar é sobre a escrita. Que bem que ele escrevia. Ensaios e
memórias, sobretudo. Espero ansiosa pelo registo das suas memórias a que se dedicou nos últimos
tempos.
Morreu em casa como
Ivan Ilitch, mas não como ele. Com toda a certeza que rodeado da família, com
compaixão, respeito e amor.
Nenhum dos livros que
tenho dele estão por ele assinados. Não por falta de oportunidade mas por falta
de coragem. Ele para mim estava num pedestal. Transparecia ser tímido, de
poucas palavras, reservado, cerimonioso, educadíssimo. Aquilo que se dominaria
de um “homem à antiga”. Daqueles que ainda beijam a mão. Um príncipe.
Era sabido que estava
doente. Não sabia o quanto nem que fosse tão rápido. Se é verdade que na morte,
todos são bons, a gigantesca
quantidade de mensagens de pesar e a unanimidade no elogio, emoção e na admiração pelo médico e pelo homem é de
ressaltar.
A Medicina, a Ciência e a Cultura portuguesa ficam mais
pobres. Foi-se um dos grandes intelectuais do país.
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