Medicina era o objectivo desde sempre. Mas não tive o comprometimento e dedicação exclusiva que as notas necessárias para a entrada
no curso, à época, exigiam. Então, no secundário, percebi, muito cedo, que não
seria uma candidata à altura. E em vez de me tornar uma sonhadora frustrada,
desisti à partida e não à chegada. Fiquei sem segundo plano. E tornei-me uma
aluna universitária medíocre. Com a permanente ideia de desistir. Entrei no que
deu. E ao contrário de muitos, apesar das constantes ideias de desistência,
consegui terminar o curso. Deve ser algo genético a capacidade de não ter
desistido. Não atribuo a qualquer mérito meu, que dependesse da minha acção
voluntária. Então, entre ser médica, ou qualquer outra profissão que incluísse
os meus gostos pessoais, sobravam coisas que não davam para viver nem ter
qualquer profissão que os pais sonham para os filhos. Esses gostos incluíam
muita coisa, de temáticas muito diferentes umas das outras, muitas vezes até
indefiníveis e até pouco coincidentes entre si. Então como isso não dava
dinheiro, tornei-me cientista (que é uma profissão que inclui segurança,
emprego para a vida e total realização pessoal... Not). Tornei-me cientista por
obra total do acaso. Por causa apenas de um professor, do seu entusiasmo, da
sua juventude e do seu grupo de investigação, e a uma das poucas aulas teóricas
a que fui assistir numa tarde de sexta feira (manhãs não eram para mim).
Descobri no decorrer destes anos que em vez de me ter tornado numa pessoa
frustrada, aprendi o lado bom da investigação. Permitiu-me viajar, conhecer
pessoas incríveis, mundos novos, pessoas que tratam de pessoas, doentes que são
curados, outros que morrem mas não em vão, museus, restaurantes, arquitectura,
paisagens, livros, escritores, cientistas, comidas, artistas, prémios Nobel,
malucos, nerds, e as melhores universidades do mundo. Baseado no supra
referido, segue-se a minha lista (por ordem cronológica):
1- Lisboa, a
cidade mais bonita do mundo. Apaixonei-me por esta cidade quando a visitei pela
primeira vez aos 3 anos. Nunca mais me esqueci de como tudo era alto e grande.
Foi o impacto da diferença entre Lisboa e Braga (cidade onde nasci) à época. O
sol não brilha em nenhuma cidade do mundo como aqui. A luz e as cores de Lisboa
dos telhados e janelas dos quadros de Maluda. O clima perfeito. O Tejo, com
dimensão de mar. As colinas. A baixa pombalina. As avenidas novas. A Gulbenkian. A cidade do
meu querido António Lobo Antunes. Dos caracóis. Da bica. Do Lux. Das intermináveis
e loucas noites do Bairro Alto. De Belém, de onde os portugueses saíram à
descoberta do novo mundo.
2 - Na
adolescência li a obra completa do Eça de Queirós, à qual volto repetidamente
de tempos a tempos, e que continua a ser um dos escritores da minha vida.
3 - Amália
intérprete/letrista/poeta dos seus poemas e dos grandes poetas de língua
portuguesa (Camões, O’Neill, Homem de Melo, Mourão Ferreira, Régio). Amália é
talvez a pessoa que mais lamento não ter conhecido pessoalmente. Talvez a mais importante
figura da cultura pop portuguesa do séc
XX e mais conhecida no mundo (esta sim, verdadeiramente, em todos os lugares
por onde passei). Sou fascinada pela vida dela. Uma menina que nasceu pobre,
que não passou da 3ª classe, que tinha um dom “que Deus lhe deu”, que se
alimentava das palmas do público, que se instruiu, que ousou cantar grandes
poetas, apreciadora de arte, que escolheu um dia morrer em NY (como uma diva, e
bem ao jeito da catarse da tragédia grega, felizmente arrependeu-se a tempo),
que amava flores (como a minha mãe). Verdadeira autodidacta.
4 - Clara
Ferreira Alves que leio desde 95 no Expresso. Com ela tive
verdadeiras aulas de cultura geral. Descobri e apaixonei-me por Hemingway,
F. Scott Fitzgerald, Susan Sontag, Graham Green. Fascinei-me pelo Médio Oriente e por
desertos. Interessei-me por política e por muitas outras coisas que não cabem
nestas linhas. Faz-me sentir que nunca conseguirei ler à velocidade do que
(ainda) gostaria de ler e reler. Mas faz-me ter essa meta e, sobretudo, não
desistir.
5 - Maria de
Sousa, talvez das poucas pessoas que não conheço pessoalmente, mas que mudou a
minha vida. Ela que é uma médica que se tornou bióloga e eu que sou uma bióloga
que queria ser médica (mas a vida não é tão fácil assim e não deu, lamento).
Com ela aprendi que é possível ser-se cientista e gostar de coisas que não têm
nada que ver com ciência. Senti-me muito menos só no mundo quando soube que ela
gostava de poesia, de tocar piano, de escrever na parte de trás das folhas em
que só um lado estava usado. Através dela cheguei a Garcia de Orta, Abel
Salazar, António Damásio, Espinoza, Auden, Cummings e por aí vai.
6 – Adriana
Calcanhotto – Quase não oiço música porque não consigo fazer mais do que uma
coisa ao mesmo tempo. Mas tal como Vinícius e Caetano, Adriana, é muito mais do
que uma intérprete. Preferi dá-la como exemplo por ser uma mulher e a mais nova
dos três, mais perto, portanto, da minha geração. O que não quer dizer que me
interesse menos pelos outros dois. A autobiografia de Caetano é um livro que já
li 4 vezes. Aprendi muito sobre o Brasil, sobre a cultura brasileira e sobre o
tropicalismo. Quem mais do que Caetano teria a bagagem cultural, o dom e a
capacidade para escrever uma canção como Alexandre?”.
Uma autêntica lição sobre o Rei da Grécia Antiga.
Adriana, reúne muitos talentos. É uma autodidacta, curiosa, conhecedora, intelectual,
moderna e sofisticada. É uma artista multifacetada que desenha e pinta bem,
escreve, fala e canta melhor, e dizem que toca bem mais do que melhor. Depois,
partilha o mesmo interesse que eu por livros e livrarias.Tal como outros antes, incluíndo Amália, pegou em grandes nomes da poesia brasileira e portuguesa,
musicou os seus poemas e deu-os a conhecer através da música (Drummond de
Andrade, Ferreira Gullar, Bandeira, António Cicero, Mário de Sá-Carneiro, entre outros).
Musicou até uma resposta de Joaquim Pedro de Andrade ao Liberation à pergunta Pourquoi
filmez-vous? Há uns anos fiz-lhe a seguinte pergunta: “Apesar das
sucessivas comparações a que tem sido sujeita, principalmente com Elis Regina,
eu diria que a sua trajectória como excelente compositora assemelha-se muito
mais a Vinícius de Moraes pela erudição do vocabulário, pela forma
extraordinária como escreve poesia em língua portuguesa e pelo veículo das
palavras ser a música. Será que daqui a alguns anos a Adriana será definida
como uma grande poeta que fez canções maravilhosas? Era assim que gostaria de
ser definida?” Ao que ela respondeu: “Ana, eu detesto comparações (como
qualquer artista). Mas considero um
grande elogio a analogia que você faz com Vinícius, a quem amo muito. Na
verdade, eu gostaria de ser indefinível, inclassificável, hoje ou daqui a
alguns anos”. Interessa-me muito mais o que ela tem a dizer e o que o que
escreve do que a melodia das canções, que quase nada entendo. Talvez por achar
que a música seja o tipo de arte que menos me interessa.
7 - Houston,
a cidade onde fiz quase toda a minha investigação de doutoramento. A cidade
improvável. No sul dos Estados Unidos. Perto do México, recheada de mexicanos
ilegais, republicana convicta, conservadora, perto da praia mais feia do mundo (Galveston),
do centro espacial da NASA onde nasceu a frase "Houston, we have a
problem", do maior centro médico do mundo, do mais importante hospital
para o tratamento de cancro do mundo (MD Anderson Cancer Center), onde tudo é
gigante (principalmente as distâncias e as doses de comida) e onde é impossível
andar a pé. No entanto, foi a maior e mais feliz surpresa da minha vida. Andei
kms de bicicleta que era o meu meio de transporte, apesar de ter arriscado a
vida muitas vezes. E foi lá pela primeira vez que descobri o verdadeiro
significado de saudade. Percebi e dei valor a coisas que até aí relativizava:
que gostar de flores e apreciar comida bem feita são também formas de arte.
Estas duas aprendi com a minha mãe e só à distância é que as compreendi. Descobri
a Rothko Chapel e o The crab do Calder. Para atirar
mais lenha para a fogueira, descobri o bairro de Montrose, o denominado bairro
estranho, um verdadeiro oásis naquela cidade, onde tudo é possível e onde tudo
pode acontecer. Durante quase estes 2 anos, a música do ipod e a bicicleta
foram as minhas mais presentes companhias. O grande exemplo de como é possível
ser-se muito feliz numa cidade feia e com um calor infernal.
8 - Nova
Iorque, a cidade que eu escolhi para viver. A cidade onde se pode fazer tudo. A
cidade onde tudo é possível. A melhor cidade do mundo para se andar a pé. Onde
realizei os sonhos inimagináveis de ver Black
Swan pela New York City Ballet,
de ver Placido Domingo como maestro de Madama
Butterfly no Metropolitan Opera e
os vitrais de Chagall. Onde vi a exposição inesquecível Savage Beauty de Alexander Mcqueen e o quadro The
great wave de Hokusai no The Met
Museum of Art, onde morei a poucos metros da primeira casa de Susan Sontag
e frequentei os lugares que ela frequentou, onde fui ao lançamento de Just Kids e Banga de Patti Smith, onde eu li muito no metro, do maior numero de
livrarias por metro quadrado, das inúmeras galerias em Chelsea. Dos fabulosos
estúdios do Soho. Ia a Times Square quando me sentia sozinha. Onde vi quase
todos os quadros que tinha visto nos livros, onde me apaixonei mais ainda por
Hopper. Onde vi as fotos de Annie Leibovitz. E onde assisti duas vezes a Wit, o monólogo magnificamente
interpretado por Cinthia Nixon sobre uma professora de literatura inglesa,
especialista em Donne, que está com um cancro terminal. Aqui também li quase
todas as biografias que encontrei de Marie Curie, a cientista que ganhou dois
prémios Nobel de Física (pela descoberta da radiação) e Química (pela
descoberta dos elementos químicos radio e polónio) e que se apaixonou por um
discípulo que era casado e foi um escândalo. Da tardia descoberta de Brooklyn.
9 - Um eléctrico chamado desejo no Teatro
Nacional D. Maria II, encenado por Diogo Infante com a brilhante interpretação
de Alexandra Lencastre (de volta ao teatro tantos anos depois) no papel de
Blanche DuBois (a mais bela representação desta personagem, de todas as que vi)
e Albano Jerónimo no papel de Stanley.
10 – Fundação
de Serralves – Não sou grande admiradora do Porto como cidade. Não gosto da cor
(permanente) cinza nem da temperatura. Não gosto do interminável síndrome de
inferioridade, do bairrismo da cidade pequena e/ou das sucessivas comparações
com a capital. No entanto, acho que uma cidade que tem um museu como Serralves
e viu nascer Sophia, não precisa de mais nada. Já valeria a pena só por isto.
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