terça-feira, 17 de março de 2015

Mísia no Theatro Circo

Braga, 6 de Março de 2015

Eu, ignorante em música, confesso-me. Tenho 35 anos, vivo entre Braga ("O penico do mundo"), NY ("A grande maçã") e Lisboa ( "A grande alface") e menos por outros lugares do mundo aos quais se chegam pelos ares. Considero-me instruída. Dizem que leio muito. Tenho um doutoramento. Viajo muito. Já estive em todos os continente excepto na América do Sul. Durmo muito pouco. Por isso, penso muito. Quase não oiço música. Leio todos os dias os jornais portugueses e New York Times. Leio todas as semanas o Expresso. A única rádio que oiço, quando oiço, é a TSF. Quase não vejo TV. Tudo isto para dizer que apesar de tudo o que mencionei, nunca tinha ido um concerto da Mísia. Ontem foi a primeira vez!  Não encontro uma explicação razoável, nem desculpas coerentes. Digo apenas que é uma vergonha este facto. Mas, como o ditado, mais vale tarde do que nunca. E nunca uma frase combinou tanto com uma situação. 

Ontem percebi o que perdi nestes anos todos. Não tinha qualquer expectativa. Fui ao concerto porque era indesculpável que uma pessoa como eu que já fez loucuras para ver uma ópera, um ballet ou uma peça de teatro, que já pagou fortunas para estar num determinado dia em determinada cidade, que conheceu quase todas as pessoas portuguesas e estrangeiras que queria conhecer, não tivesse visto um (que fosse) concerto da Mísia. Esta cantora mais conhecida fora do que dentro do país. Esta pessoa que eu nada sabia ou conhecia para além de estar sempre impecavelmente vestida e penteada, uns cortes de cabelo contemporâneos, que cantava uns fados. Como a maioria das pessoas, e sem nenhuma razão plausível, achei que morava fora de Portugal. Talvez em Paris, no meu imaginário. Ouvi, repetidas vezes, tempos a fio, até à exaustão um fado na voz dela, que até hoje não sei se é das suas músicas mais conhecidas: "O Corvo" ("Tenho um corvo à flor da pele/ vive de uma ferida aberta/ acorda quando me deito/ levanta voo do meu peito/ sempre sempre à hora certa/...entra pela minha vida/ como a lua num jardim / pendura tudo o que valha/ no gume de uma navalha/ traz-me pedaços de mim/ tenho um corvo à flor da pele/ um irmão da minha idade/ acorda quando me deito/ levanta voo do meu peito/ diz que se chama saudade").

Um piano e uma voz. É assim este concerto. Um maestro (Fabrízio Romano) que tocava tão bem que parecia cantar com as mãos. Belíssima performance. Mísia introduziu cada música com detalhados monólogos. Delikatessen Café Concerto é um jantar em tempos de crise que Mísia imaginou um dia que estava em casa. As músicas são sobretudo das décadas de 50 e 60. Começou com a primeira canção do disco Fado do ciúme. As histórias que foram descrições de acontecimentos reais como a coincidência de ter encontrado num alfarrabista telegramas de artistas dessa época. Contou também a história  do poema de Tiago Torres da Silva sobre o altar que tem em casa com santos de todas as partes do mundo. Confessou-se agnóstica mas que acha que aqueles santos, rodeados por fotos da família e amigos, põem-se todos de acordo e protegem-na. Falou também de um poeta espanhol que morreu na prisão e nunca chegou a conhecer a filha e que para ela fez uma canção de embalar: Nanas de la cebolla. Destacou os amigos Eduardo Prado Coelho e Vasco Graça Moura que diz fazerem-lhe muita falta. A segunda parte do concerto, na qual mudou de roupa, virou-se para o fado: Que fazes aí Lisboa?, Sem saber. O poema Veste de noite este quarto foi escrito por António Lobo Antunes para o cantor Vitorino Salomé. Mísia perguntou se sabíamos quanto tinha ficado o jogo Braga-Porto. Disse não se interessar por futebol nem saber deste jogo mas que quando chegou perguntou “Onde está o público?”. Mas apesar de a sala não estar cheia, para ela, é como se estivesse. E, por isso, foi longamente aplaudida. Duas das músicas com que terminou, entre elas Espelho quebrado, fazem parte do disco que será uma homenagem a Amália. Será lançado no outono e chamar-se-á Para Amália. Fez um demorado elogio a Amália, não só como cantora e intérprete, mas como grande talento para a escrita de poemas e a sua contemporaneidade (mais do que Edith Piaff e Billie Holiday)

Descobri uma cantora totalmente desconhecida para mim. Diz-se tímida. Mas tem um humor judeu que adorei. Ama os poetas e os poemas. O poeta que mais cantou foi Vasco Graça Moura (que eu tanto gosto e que fez a tradução brilhante e que eu conheço do livro Divina Comédia de Dante). Cantou o meu querido António Lobo Antunes. No intervalo das músicas conversa. Conta histórias. Não sei se foi improviso. Eu prefiro acreditar que sim.

Eu prefiro fingir acreditar na desculpa para o concerto estar meio vazio foi de coincidir com o dia e hora de um jogo Braga-Porto. As "mentiras piedosas", como Blanche Dubois chama-as no Eléctrico chamado desejo de Tennessee Williams. Porque será que eu sempre tive capacidade para decorar falas de diálogos de livros e nunca tive capacidade para decorar matéria quando era estudante? Alguma explicação científica deve haver para este fenómeno

Terminou com um agradecimento ao público que para ela encheu a sala, a transbordar.O encore foi somente com Lágrima de  Amália, que para mim é tristíssima. Dedicou-a ao seu fiel amor, o público. Aplaudida de pé, mais uma vez, como bem mereceu. A sala não estava cheia nem perto disso. Mas o entusiasmo era o equivalente.


Estava na primeira fila. Esperei um pouco para as pessoas que estavam atrás de mim, agora à frente, saíssem. Quando vejo a Adriana Calcanhotto. Se não fosse verdade diria que estava a alucinar. Encontrá-la por mero acaso, em duas cidades diferentes, no espaço de duas semanas, em locais que não era os concertos dela,  qual seria a infinitésima possibilidade? Tento passar despercebida por ela. Prefiro que não me reconheça. Eu e o meu medo de os outros acharem que o meu desconforto é directamente proporcional ao deles, nestas situações. A evitar, por isso. Eu, que tenho capacidade social de uma criança tímida de quatro anos. Sim, quase um bicho do mato. Ultrapasso, o melhor que posso, esta "pedra no caminho". Vou comprar o último CD  da Mísia Delikatessen Café Concerto que não tinha encontrado em lado nenhum em Braga, Guimarães e Lisboa. Mas que a Mísia tinha-me dito que estaria disponível para venda no Theatro Circo. E já que ali estava, eu e o CD, num concerto que adorei e que não sabia quando se iria repetir. Dei um pontapé, a custo, à minha timidez e vou aos camarins. Esta sim, a verdadeira situação constrangedora. Se há situação constrangedora é esta. Estar ali à espera de falar com uma pessoa que não nos conhece, a quem vamos dizer umas palavras amáveis e gentis, iguais às dezenas de outras pessoas. Que vamos ser apresentadas, mas que se for como eu, no dia seguinte não se lembra do que comeu na refeição anterior. Quando cheguei ao camarim, a Adriana estava a despedir-se da Mísia. Eu não lhe queria dizer nada para além dos parabéns pelo magnífico concerto. A Mísia assinou- me o CD que eu vou ouvir até enjoar no carro. E eu desci no elevador e pelos labirínticos corredores do Theatro Circo. 




3 comentários:

  1. Corroboro inteiramente tudo que escreveu.
    Dá vontade de gritar ao mundo: atenção não percam um concerto de MÍSIA!
    Neste triste mundo de "vazios" as pessoas não sabem o que perdem... não assistir à Arte desta grande artista! Parabéns pelo seu texto; é certeiro!

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  2. https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=595061860637838&id=100004020880602&pnref=story

    Não deixe de vêr!

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  3. Leonilde, muito obrigada pelas suas palavras.

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