Doce Pássaro da Juventude (Sweet Bird of Youth) como Um
eléctrico chamado desejo (A
streetcar named desire) a personagem principal é vítima da passagem do
tempo. O desaparecer da beleza. Uma actriz decadente, alcoólica, envelhecida,
com pouca ou nenhuma esperança no futuro que bebe e droga-se para
(simplesmente) esquecer. Alexandra Del Lago, a “Princesa” (Maria João Luís),
acompanha Chance Wayne (Ruben Gomes), um gigolô de 29 anos com aspirações a
actor, à cidade onde nasceu, St Cloud, no sul dos Estados Unidos. Percebe-se
que tem praia pelo som das gaivotas. Este texto maravilhoso de Tennessee
Williams, um dos que vai mais longe na abordagem à degradação humana. Encenado
por Jorge Silva Melo. Uma grande interpretação de Maria João Luís. Uma das
grandes vozes do teatro nacional.
Um rapaz, Chance Wayne, de regresso à terra de onde partiu há anos à
conquista do mundo (de uma forma fácil). Já não tão novo assim, apira a uma
carreira de actor, embora seja mediocre. Quer um futuro com o seu amor,
Heavenly. É Páscoa, mas não haverá ressurreição. Todos procuram voltar a um
passado que imaginaram feliz. Mas nada do que foi voltará a ser. O tempo
passa e não se pode recuperar o que passou. "Tempo... Quem o pode
combater, quem o pode vencer?... O tempo que rói". Irrepetível.
Heráclito. de
A cena começa num quarto de hotel. Chance acorda ressacado enquanto
a Princesa/Alexandra Del Lago aproveita os últimos minutos de sono,
com os olhos cobertos. A noite foi difícil, percebe-se. Regada a muito álcool.
Incluiu óculos partidos e garrafas de vodka.
Chance está a queimar os últimos cartuchos da sua juventude. Os anos estão
a passar e com eles a levar a juventude e a beleza que foi o seu sustento. Tem
29 anos e o cabelo começa a cair-lhe. Era o rapaz mais bonito, encantador e
mais querido de St Cloud, cidade onde nasceu.
Queria ter sido actor: "Tive mais oportunidades do que os dedos da
minha mão, e quase o consegui...há sempre qualquer coisa que me bloqueia".
Critica a vidinha que as raparigas e os rapazes do seu tempo têm: "As
raparigas tornaram-se donas de casa, jogam bridge, e os maridos
pertencem à Câmara de Comércio...uma chatice". Ele gaba-se da boa vida que
viveu: " talvez a minha única é verdadeira vocação: fazer amor... Dormi
com todo o jet-set de NY!... Às pessoas de meia-idade restituía uma sensação de
juventude. Às raparigas solitárias, compreensão, apreço! Às pessoas tristes,
perdidas, algo de leve e revigorante! Aos excêntricos,
tolerância...". Passou os últimos tempos a "pôr bronzeador nas
costas de milionárias gordas". Revela o insucesso da carreira militar quando
foi chamado para o Exército: "fui para a Marinha porque me agradava mais a
farda de marinheiro. A farda era a única coisa que me agradava... Não era capaz
de suportar a maldita rotina, a disciplina... Tinha vinte e três anos. Estava
no auge da minha juventude e sabia que a juventude não durava para sempre...
Comecei a ter maus sonhos, pesadelos e suores frios durante a noite, e tinha
palpitações. Quando ia de licença, embebedava-me e acordava nos lugares mais
estranhos, e ao meu lado estavam rostos que nunca vira.... Por motivo de
doença, fui dispensado e voltei para casa à civil. E nesse momento reparei como
estavam diferentes, a cidade e as pessoas. Educadas? Sim, mas não cordiais. Não
havia títulos nos jornais, só umas linhas, uma coisa de nada ao fundo da quinta
página.... A dizer que Chance Wayne passara honrosamente à disponibilidade da
Marinha devido a doença e que vinha para casa convalescer... Foi então que
Heavenly se tornou mais importante para mim do que tudo no mundo".
O sonho de Chance é ter o impossível: a juventude de volta, intacta e
honrada. E isso, ninguém poderá voltar ter. O tempo passa e não volta.
Alexandra Del Lago foi em tempos uma bem sucedida actriz. Uma vedeta de
Hollywood. Uma artista. Experimenta agora o declínio, suportado por muito
álcool e drogas. O tempo também passou por ela. A sua aparência jovem
desapareceu. Segundo ela, cometeu a loucura de regressar, "regresso
triunfal". Foi uma decepção. As pessoas ficaram surpreendidas com o
aspecto dela, ficaram chocadas: "aquilo é ela?". Fugiu, qual Gata
Borralheira, e tropeçou nas escadas: "caí, rolei como uma puta bêbada até
ao fundo... Mãos piedosas sem rosto, ajudaram-me a levantar".
Heavenly, filha de Boss Finley, o político mais poderoso da região. Tinha
quinze anos quando Chance Wayne a "possuiu". "Houve uma altura
em que me podia ter salvo, se me tivesse deixado casar com um rapaz que ainda
era jovem e honesto, mas em vez disso mandou-o embora, expulsou-o de St
Cloud... Tentou ser tão importante como esses figurões com os quais o papá quis
usar-me, ele foi-se embora. tentou. Mas como as portas certas não se abriram
foi às erradas... Se o papá casou por amor porque não deixou fazer o mesmo,
quando ainda estava viva por dentro e ele ainda era honesto e decente?"
Heavenly, depois da doença sexualmente transmitida por Chance, "uma
doença de putas", teve que se sujeitar a uma operação que lhe cortou a
juventude do corpo. "Fez dela uma mulher velha, estéril. Seca, gélida,
vazia como uma velha". Espera terminar a vida num convento.
Boss Finley, o político mais poderoso da região. Chegou a St Cloud de pés
descalços aos 15 anos. Ostenta o orgulho branco do Sul dos Estados Unidos.
Considera que a filha vale cem mil vezes mais do que Chance. Viúvo. Foi
sempre infiel enquanto a mulher ainda era viva. Mas, mostra que no fundo,
até os maus tem qualquer coisa de bom: "lembras-te dessa jóia? A
última que lhe dei antes de morrer.... Quando a comprei sabia que ela estava a
morrer. Custou-me quinze mil dólares. E sabes porquê? Para que ela pensasse que
ia ficar boa... Quando a pus na sua camisa de noite, coitada, começou a
chorar...". Queria convencê-la que ninguém daria um diamante tão grande a
alguém que estaria a morrer. " sentou-se na cama, feliz com um passarinho
com a sua jóia, recebeu visitas durante todo o dia, riu, brincou com elas, ali
com o diamante, e com ele morreu antes da meia-noite. E até ao último instante
da vida acreditou que o diamante era a prova que não estava a morrer".
Em Chance e na Princesa observamos um destino comum, o destino da perda.
Tal como Chance, ela não pode fazer o relógio voltar para trás. O relógio não
pára para nenhum deles, como não pára para nenhum de nós. "" Para
Princesa, parece no final, haver um regresso à glória e fama passadas, embora
pareça muito transitório: "eu sei que estou morta como o antigo
Egipto".
A peça termina com um monólogo de Chance virado para o público: "Não
vos peço piedade de, apenas compreensão... Não, nem isso. Apenas que me
reconheçam em vós próprios, e reconheçam o inimigo comum: o tempo, o tempo em
todos nós".
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