sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Das rosas

São pessoas como Adriana e Nestrovsky, e todos os grandes nomes da música brasileira, que dão a mais valiosa e sagrada imagem do Brasil no mundo. Um Brasil culto, informado, moderno, dos grandes escritores e poetas, que domina a língua portuguesa, que pensa, que tem opinião e (sobretudo) que não tem medo.

Já que as pessoas gostam tanto de classificar, este espectáculo é um recital em forma de lição de Adriana Calcanhotto com Arthur Nestrovsky, construído a partir da apresentação única feita na Biblioteca Joanina em Dezembro de 2015, aquando da comemoração dos 725 anos da Universidade de Coimbra. Nesse dia, para uma plateia de somente 100 pessoas, que só incluía convidados, Calcanhotto ainda tinha o cabelo comprido, ainda usava brincos compridos de filigrana da alta joelharia portuguesa, aguentou um frio daqueles, usou o mesmo vestido de veludo comprido preto e foi feita Embaixadora da Universidade de Coimbra.

Em Lisboa, os mesmos estão (sempre) presentes na plateia. Mísia, não foi esquecida nos elogios. Esta amiga é para Calcanhotto a “professora de fado e pastéis de bacalhau, entre muitas outras coisas”. O amigo David, que Adriana, achava por bem lá estar, e ele não falhou, foi tratado por “meu amor” e também foi lembrado pelo envio das manchetes da época sobre “o escândalo, o disparate e a heresia de Amália a cantar Camões”.  Mas “Amália é Amália e ela pode tudo”. Ana Vidigal estava ao meu lado, na segunda fila. Passaram por mim a quase brasileira e a especialista em Brasil, Alexandra Lucas Coelho, e o temido crítico de música do Público, Nuno Pacheco. Avistei ao longe Anabela Mota Ribeiro, Pilar del Rio, Eduardo Lourenço, Mísia, António Barreto, José António Pinto Ribeiro...
Adriana, entra a sorrir sob palmas ruidosas. Coloca cuidadosamente o violão a tiracolo. 

O cenário é minimalista. Uma mesa com uma jarra de rosas vermelhas, uma partitura onde tem o iPAD e os óculos, dois amplificadores, o banco e o microfone de Arthur Nestrovsky, que permanecerá vazio até à décima música. Adriana “de vestido de veludo de seda preto, largo, mangas compridas justas, decote em barco, aquele cabelo curtíssimo que lhe dá um ar antigo e mostra a linha do crânio, impressiona. Graciosa, cultivada, acompanhada pelo Arthur Nestrovsky, outro ser que irradia luz”. Estas últimas palavras são da Fernanda Mira Barros que descreveu em pouco o que eu não vou conseguir dizer com muito.


Copyright: Rita Burmester

O espectáculo começa com Tive um coração perdi-o cujos versos são de Amália. Adriana fala que conhecia os versos de Amália, tem até um livro, mas que nunca tinha prestado muita atenção “tanto quanto, quando”ouviu os versos na voz de Mísia. Para mim, que conheço as duas versões, esta versão em forma de balada sussurrada, não tanto de fado, ficou perfeita.

Segue-se Negro amor popularizada na voz de Gal Costa, um hit radiofónico no Brasil. É uma uma versão para português de Caetano Veloso e Péricles Cavalcanti da canção  It’s all over now baby blue de Bob Dylan, o “nosso Nobel da Literatura”. Adriana sente-se escandalizada por acharem um escândalo Dylan ter sido galardoado com o Nobel. Aquela história chata de sempre de se poder achar que letra de música é menos de que poesia. A voz, nesta canção não atinge, de todo, a perfeição. Mas nesta, o verdadeiramente importante não é a versão mas a mensagem e o significado.

O outro de Mário de Sá-Carneiro que Adriana musicou “se é que se pode chamar isso de musicado”. A descoberta de Mário de Sá-Carneiro deu-lhe a oportunidade, para além de “o conhecer a ele mesmo, de conhecer pessoas muito interessantes que também gostam muito dele". E uma das pessoa mais interessantes que ela destaca é a “Professora Cleonice Bernardinelli que é uma amante e especialista em língua portuguesa. Fizeram alguns saraus juntas “ela fingindo que lê porque ela tem uma memória maior que toda essa sala aqui reunida”.  Cantou em forma de fado  Senhora dos olhos lindos, que Cleonice Bernadinelli lhe pediu, especialmente, para musicar. Genialmente tocada e inesquecível versão. Na sequência, explica que Cleonice Bernardinelli não quer ser chamada de Professora nem de Dona mas apenas de Cleo “para ficar mais próxima da gente, ela tem 101 anos, eu entendo perfeitamente”. Destacou que têm muitos interesses em comum: nasceram as duas no século passado, gostam de Mário de Sá-Carneiro, de ovos moles de Aveiro e gostam muito de Dom Dinis. Na ocasião do concerto na Biblioteca Joanina, dentro da Universidade de Coimbra, “tinha que cantar Dom Dinis, claro”. Relata que quando voltou para o Brasil, ligou para ela e disse: “Cleo, eu cantei Dom Dinis na Biblioteca Joanina em português arcaico” ao que ela respondeu: “Pra quê isso menina? Eu passei isso tudo para português moderno em 1953”. A coincidência improvável é que exactamente o poema O que vos nunca cuidei dizer (cantiga de amor), pelo qual Adriana se interessou, não estava traduzido para português moderno.  “Então, por culpa exclusiva da Professora Doutora Honoris Causa por Coimbra, Cleonice Serôa da Motta Bernardinelli, serei obrigada a cantar a primeira estrofe de uma cantiga de Dom Dinis em português arcaico, me perdoem”.

Depois seguiu-se a canção a cappella do trovador provençal Arnaud Daniel Canso do ill mot son plan e prim traduzida em português por Augusto de Campos Canção de amor cantar eu vim. Adriana chamou-lhe o “Bob Dylan do séc XII”. Mas ao contrário de Bob Dylan, Arnaut Daniel era “muito rarefeito, de um artesanato poético incrível. Ele fazia um tipo de trobar clus. Um trobar muito refinado, muito sofisticado. Foi o inventor forma poética sextina” [sestilha -estrofe de 6 versos de 7 sílabas e rimas simples). “Foi recuperado por Dante na Divina Comédia onde é a única criatura que fala na sua língua nativa (provençal). Mais tarde, Pound, recupera-o de novo. Lança a semente da alta poesia moderna europeia. Nas iluminuras, os trovadores aparecem fazendo gestos. E cada gesto, cada ângulo de cotovelo, cada quebrada de punho tem um significado”. E Arnaut Daniel aparece sempre como “olha como eu sou maravilhoso, olha como eu sou rarefeito, olha como sou incrível”.
Seguiu-se a Poética do eremita de Fiama Hasse Pais Brandão pelo qual Adriana se apaixonou à primeira vista. Referiu a sua dificuldade de entrar nessa poesia tão densa e tão hermética. Esta foi esquecida em Coimbra.


Copyright: Márcia Lessa

Copyright: Márcia Lessa
Adriana terminou a actuação solo com uma versão de Com que voz de Camões eternizada na voz de Amália. Há algum tempo atrás, Adriana soube do escândalo (através do amigo David de Lisboa que lhe mandou as manchetes da época) que foi Amália cantar Camões. Assim como o escândalo de Bob Dylan ter sido galardoado com o Nobel da literatura. “Eu fico escandalizada por alguém se escandalizar com isso”. As manchetes da época classificavam: “Isso é um escândalo. Isso é um disparate. Isso é uma heresia. É Camões. Ela não tem direito de fazer isso”. E o outro lado dizia: “Ela é Amália, pode fazer tudo o que quiser”. Juntos, Amália, Alain Oulman e Camões fizeram Com que voz. Que balada linda ficou a versão de Adriana.

“Não é possível disfarçar para vocês que não preciso mais dos óculos”. Assim começa a segunda parte, em que Adriana lê o poema Mortal loucura de Gregório de Matos no iPAD e entra Arthur Nestrovsky que faz o eco (final de cada verso que era a última parte da palavra anterior), na versão musicada de Zé Miguel Wisnik. O domínio do violão de Nestrovsky é do nível académico. Gregório de Matos nasceu em Salvador mas “era de nacionalidade portuguesa, como todos os que nasciam no Brasil no séc XVII. Estavamos até pensando nisso, em recuperar isso, devíamos todos voltar para cá do jeito que as coisas vão no Brasil”. Cantava os seus versos pelo Recôncavo baiano com uma violinha de cabaça.

Depois fizeram um salto de três séculos e passaram para Vínicius de Moraes, “um extraordinário poeta de livros que viria a tornar-se um extraordinário letrista de canções e também compositor”. Adriana diz (de cor) Soneto de Corifeu, tão lindo.

E a seguir cantou Valsa de Eurídice, letra e composição musical de Vinícius  que a escreveu como presente de aniversário de 15 anos da filha Susana (mulher de Adriana Calcanhotto, falecida em 2015). Esta canção termina, também, com a palavra saudade: “Pensa que a saudade/ mais do que a própria morte/ Pode matar-me/ Adeus”. Para além de ser um letrista maravilhoso que compôs meia dúzia de canções incontornáveis do cancioneiro popular brasileiro. No entanto existe alguma controvérsia: “Susana andou fazendo uns cálculos e descobriu que quando a música foi feita ela já tinha 16...”. Esta valsa foi incorporada anos depois no musical Orfeu da Conceição. Vínicius  teve a primeira ideia da junção da tragédia grega com a cultura negra do povo do morro do Rio de Janeiro. Numa noite, perto do Carnaval, teve uma inspiração fulgurante e passou a noite a escrever praticamente o texto inteiro que viria a ser o Orfeu da Conceição. E para musicar o texto ele procurou um arranjador que estava a começar e tinha muito talento, António Carlos Brasileiro de Almeida Jobim. Seguiu-se outra canção de Vinícius de Moraes compositor, Medo de amar: “...Porém, não se surpreenda se uma outra mulher/ Nascer de mim, como do deserto uma flor/ E compreender que o ciúme é o perfume do amor”.

Seguiu-se a belíssima Noite de São João de Alberto Caeiro musicada por Fred Martins. Para mim, um dos momentos mais bonitos da noite. Mais uma vez, como as flores que deram o nome a esta lição, Adriana leu um poema sobre rosas, As rosas com bolores de Adília Lopes. E Segue o teu destino de Ricardo Reis e musicada por Suely Costa.


Copyright: Márcia Lessa

Há uns anos, a Universidade de Coimbra decidiu atribuir o título de Doutor Honoris Causa ao Reitor da Universidade Federal da Bahia, à época, Edgardo Santos. Esse foi um homem extraordinário que coincidiu com um momento extraordinário da história do Brasil. Foi um período realmente muito curto de florescimentyo da cultura brasileira, de cerca de 10 anos que incluiu: invenção da Bossa Nova, movimento de educação pública, desenvolvimento da arquitectura moderna brasileira, a nova capital do Brasil- Brasília, o cinema novo, o Brasil foi bicampeão de futebol com Pelé. Uma época em que Juscelino Kusbichek começa o seu mandato em 56 até à implementação da ditadura militar em 64, interregno democrático, de marcado crescimento económico e cultural promoveu o supra descrito. Então o Edgardo Santos, Reitor da UFBA, considerado um cosmopolita levou muitos investigadores convidados de fora para a universidade, incluíndo Walter Smetak, um músico suiço com o qual estudaram Caetano Veloso, Tom Zé e Gilberto Gil. Então aquando da vinda de Edgardo Santos, foi convidado também Assis Chateaubriand, o magnata das comunicações, uma espécie de Citizen Kane brasileiro. Como ele não pode vir, convidou Dorival Caymi o representasse, representando a Bahia. Então Caymi veio pela primeira vez a Portugal com a cantora Doris Monteiro. Passou alguns dias aqui e teve alguns encontros, alguns deles memoráveis, incluíndo o encontro com Amália. Diz-se que ali ocorreu “o casamento entre o samba e o fado”. Se o casamento foi ou não consumado, não se sabe. Quando Caymi estava a caminho de Coimbra para a cerimonia, parou nas Caldas da Raínha e existe uma fotografia muito bonita dele junto de um roseiral na estrada. A partir dessa experiência, Caymmi compôs a canção que deu o nome a este espectáculo Das rosas, que eu achava que viesse do Milagre das Rosas da Raínha Santa Isabel (mulher de Dom Dinis).
Sem nenhuma palavra a apresentá-la a seguinte foi a lindíssima Cajuína de Caetano,cantada em dueto,com uma letra tão enigmática que Arthur Nestrovsky explicou:

Existirmos: a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos intacta retina
A cajuína cristalina em Teresina


Aqui Nestrovsky dá-nos uma verdadeira aula de metafísica filosófica, com perguntas sem resposta e os seus significados. “Existirmos: a que será que se destina?”. Convenhamos que um autor que é capaz de fazer uma canção com a pergunta das perguntas não é pouca coisa. Esta é uma versão da pergunta existencial do filósofo alemão Martin Heidegger (cujo livro, Nestrovky em Coimbra, citou em alemão, uma vez que nas próprias palavras, a plateia devia ser unanimemente constituída por académicos) "por que existe afinal ente e não antes nada?". Existe outra formulação dessa pergunta num conto Manuelzão e Miguilim de Guimarães Rosa, na cena final, em que o menino Miguilim questiona a mãe: “Mãe, mas por que é, então, para que é, que acontece tudo?”. Heidegger pergunta isso na terceira pessoa, a voz do pai fazendo a pergunta de fora; Guimarães pergunta do ponto de vista do menino confrontado com o mistério da existência; e Caetano faz essa pergunta de um modo muito diferente. Existir, neste caso, é ao mesmo tempo substantivo e verbo. A cena da canção remete para o encontro de Caetano Veloso com o pai de Toquatto Neto (amigo e parceiro de Caetano na época da Tropicália que se suicidou no dia do próprio aniversário) em Teresina, capital do Piauí: “A flor já é um presente em si, é uma dádiva, não é uma coisa que vai durar, que vai permanecer. O que permanecerá é o gesto do presente.

Já a rumar para o final, canta Morro dois irmãos de Chico Buarque, que fez parte do repertório do seu disco A fábrica do Poema. Lê depois o poema do Canção do exílio de Gonçalves Dias: “Minha terra tem palmeiras,/ Onde canta o Sabiá;/ As aves, que aqui gorjeiam,/ Não gorjeiam como lá. A penúltima canção foi Sabiá. Com versos de Chico Buarque aos 24 anos e música de Tom Jobim. Esta canção é uma espécie de Canção do exílio. A canção Sabia ganhou o festival da canção no Maracanazinho sob os apupos da plateia porque não perceberam o significado da canção. É sobre um lugar imaginário, um lugar que não existe ou que não existe mais. O sabiá na palmeira não canta, eu que sou bióloga, aprendi isso com um músico). Arthur não esquece de referir que não se cumpriu esse desejo do Brasil, um país que ainda não se cumpriu, e que ainda há pouco perdeu uma grande oportunidade. Sempre velado, nunca directo, foi o mais claro que conseguiu ser na crítica política à situação do Brasil actual. Não se ouviu, como nos concertos de Caetano, “Fora Temer”. Não sei se porque as pessoas estão demasiado desanimadas ou se não eram politizadas... Fica a pergunta por responder.

Termina em apoteose com o pout porri com Coimbra e Chega de saudade com sotaque brasileiro e com melodia de bossa nova, que termina com toque e gesto de Carmen Miranda, e a palavra saudade com sotaque português.

No encore do Porto, Adriana disse que era a primeira vez de Arthur Nestrovsky no Porto: “Eu avisei a ele”. E que também disse: Esta sala parece um pouco fria”. Ao que ela respondeu: “Espera”.Confidenciou que na primeira vez que esteve no Porto com Dé Palmeira e que se lembra que era numa sala com cortina e que ele disse enquanto a corina fechava e olhava para ela: “Isso não é uma platéia, é família”. Como no decorrer do espectáculo faltou o que eles chamaram de “maior compositor gaúcho”, Lupicinio Rodrigues: Nunca e
Voltou para um segundo encore: “Em que é que posso ser útil?” e só em Lisboa terminou com duas músicas: Esquadros e Inverno. Em Coimbra e Porto ficou-se, apenas, pela primeira. O Porto, ah o Porto, acompanhou baixinho.
Comentei com a Anabela Mota Ribeiro o quanto este espectáculo/concerto/recital mais parecia uma aula. A Ana Vidigal classificou-o no seu blog como “lição”. Essa é a verdadeira palavra, a que me faltava. Uma verdadeira lição de literatura e de história da cultura e música brasileira, principalmente dos últimos 50 anos. Este modelo não é totalmente desconhecido nem inovador. Assisti por duas vezes ao que Maria Bethânia denomina de “recital” Palavras. A diferença é que as histórias, referência e notas de rodapé não são tão profundas nem extensas. Ao contrário de Nuno Pacheco, que classificou  de “extensos enquadramentos, explicações e contextualizações” e aconselha que esta é uma “jóia por lapidar, onde a música e a poesia só terão a ganhar com um corte drástico no didactismo”, eu acho que foi magistral. A outra crítica que faz é à voz de Adriana: “a sua voz não esteve nos melhores momentos”. Esta é a diferença entre um crítico e uma leiga. Um crítico é imparcial e uma leiga gosta ou não gosta. E este não era um espectáculo de canção. E Adriana não é uma interprete virtuosa como Gal, Bethânia ou Elis. Então, qual o problema da voz?

Quando se sai do espectáculo quase não se sabe o que fazer com tanta informação. Sai-se de coração cheio. Depois da ovação catártica em Coimbra, quando Calcanhotto, surgiu no palco para o encore com a capa de Lente, ela que é actualmente Professora Convidada da Universidade de Coimbra onde leccionará neste segundo semestre na Faculdade de Letras, a fasquia para o Porto ficou muito alta. Mas o Porto, com as suas gentes tão sinceras e espontâneas, não desiludiu, mais uma vez.


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