sábado, 25 de fevereiro de 2017

O imiscível

No labiríntico hotel, tentando pela primeira vez não me perder, vou à recepção avisar que deixei a minha mala no quarto. Agora que escrevo é que me dou conta que escusava de ter feito isso in persona. Perderia menos tempo e seria mais eficiente, se telefonasse. Recado dado, nada feito. Tenho que voltar ao quarto para buscar a mochila porque tenho que fazer check out e entregar a chave. Volto para os corredores labirínticos. Mal saio, tenho que parar porque estão duas pessoas a impedir-me a passagem. Um é o senhor que carrega as malas e a outra é ela. Felizmente, estão de costas e como o chão é alcatifado, não dão por mim e eu espero, pacientemente, para retomar o meu passo. Reconhecia-a imediatamente, mesmo de costas. Talvez pelo cabelo muito curto. Aqui, hoje, não é (mais) uma diva. É uma pessoa normal. E como as pessoas normais, está vestida como as pessoas normais a esta hora do dia. Um blazer preto, uma camisa aos quadrados de flanela, jeans apertados e sapatos oxford camel. A única coisa que é (mais) diferente nela é a brancura. Como ela é extremamente branca. Mais branca do que pareceu ser em todas as outras vezes. Talvez pela proximidade. De um branco que reluz. Na mão tem um pequeno saco de compras da Gulbenkian com o que parecem ser um ou dois livros. Ela caminha pelo corredor enorme, vira à esquerda e eu sigo, perdida mas à espera de acertar, em frente, para o meu quarto. Pontualíssima para o evento que começa daí a 15 minutos.Como um dia escreveu Anabela Mota Ribeiro:  "não é uma brasileira do samba, de pele morena, de jeito dengoso. É uma mulher que conjuga o verbo flanar com frequência. Que regressa a casa com as malas cheias de livros. E que gosta de dançar no Lux e de ouvir fado em Alfama. Imensamente requintada, sofisticada. Delicada". Subscrevo na totalidade.

As minhas questões, que não me abandonavam: Quem se lembrou de juntar estas duas pessoas? E a segunda, por consequência era: Como é que ela aceitou o convite? Nunca fui politicamente correcta, para o bem e para o mal.

Se a moderação, os convidados da mesma mesa, e/ou o público não forem adequados, acaba por ser decepcionante. E eu que tinha (quase) a certeza que seria, tive que fazer a prova dos nove. Pagar para ver. Então, juntar uma cantora consagrada, que a maioria conhece (apenas) de cantar mas desconhece as suas outras artes como escrever, compor, desenhar, compilar e o excelso domínio da língua portuguesa.  Um moderador que é praticamente desconhecido, que eu desconfio que ninguém naquela sala conhecia, à excepção do anfitrião (e algumas pessoas que se podiam contar pelos dedos de uma mão). E finalmente,  “o gajo que escreve cenas”, como o próprio se descreve e parece gostar. Quem se define assim já não pode ser alguém cuja qualidade literária é algo muito aprofundado. Ela tira um livro, um ipad, iphone, talvez um caderno e um lápis. Os outros nada. Eu sei que deve haver algum lugar para o improviso. Mas nada? Ela lê talvez dois poemas de amor do Fernando Pessoa.

“O gajo das cenas” é só piadas. Cita uma carta de amor, eleita a melhor de todos os tempos, pelos americanos. O americano comum não é nenhum sinónimo de qualidade. Com um humor tão fácil e tão popular. Tem a mania que é engraçado. Um cita Machado de Assis e outro cita Johnny Cash. Se, pelo menos, citasse Leonard Cohen ou Dylan. A necessidade de fazer rir toda a gente (mesmo que não tenha piada nenhuma, para mim), um palhaço (no mau sentido da palavra). E toda a gente se ri. Serei apenas eu que não tenho vontade de me rir? Será que não tenho sentido de humor? Sou eu apenas que já não me consigo rir do que não é sofisticado? Vende, dizem-me, um número inacreditável de livros por semana. Um best seller, portanto. Mas seja lá o que isso for. Neste país não é preciso grande coisa para se ser best seller. Não me interessa escritores nem livros cujas citações que fazem são de Johnny Cash e das músicas dos Clã e das escritas de Carlos Tê. Percebi hoje, finalmente, o sucesso deste pseudo escritor. Pelo menos tem a noção que é ridículo. "Gosto de ti como de arroz". Usa exemplos de de futebol. Que vergonha, para mim, juntar estas pessoas à mesma mesa. Com tanto de tão bom em Portugal. Mas sala está cheia para o ver. Essa é a verdade. A plateia está cheia de gente muito produzida para esta hora da manhã e para este dia da semana. Dirão que 97% são mulheres e 3% são homens. 

Ela tenta em vão elevar o nível de discussão. Cita um verso de uma música sua, cuja letra foi escrita pelo António Cicero:"Faço longas cartas para ninguém". Nos tempos mortos, em que ouviu mais do que falou, rabiscou e citou Oswald de Andrade: "Amor/ Humor". Termina a dizer que a sua representação do amor é a palavra "revolução". Os exemplos de cartas de amor que citou: as cartas que enviava para a avó quando chegou ao RJ, as cartas que alguém na Central do Brasil quando não se sabe escrever.

Uma das coisas mais bonitas que ouvi, e a melhor intervenção, foi a história de uma senhora que contou a história da avó que era analfabeta e que aprendeu a escrever, já depois dos 40, para escrever cartas de amor para o avô.

O que me chocou foi o politicamente correcto do Luís Osório, que supostamente pertence à elite, e que o elogiou dizendo que gostou muito de o ouvir. Pois eu não. Lamento. E não tem nada que ver com muita gente ler os livros dele e da maioria dos livros dele serem lidos maioritariamente por mulheres. Tem que ver com cuidado, com profundidade, com a forma com que se aborda a temática. Aquilo que se chama estilo. Uma forma de escrever. Eu quando leio estou à espera de aprender, de melhorar, de me surpreender, de admirar. Não quero ler e achar que eu poderia ou saberia fazer melhor. Não me interessa uma literatura acessível, mediana, sem aprofundamento de nada, com um monte de futilidades e banalidades.  Estou farta desta conversa de cosmética e circunstância, do desejo e necessidade que se tem, permanentemente, de se evitar confrontos. 

Nada tenho contra o pseudo escritor, que eu acharia melhor definir como pessoa que escreve, não sei se livros. Simpatizei com a pessoa. Não o achei pretensioso ou à espera de ser mais do que aquilo que é. Achei-o genuíno e sincero. Sem pretensões.

Agora juntar estas duas pessoas foi um erro, desculpem.

Não parece mais tão tímida como diz ser ou como dizem que é. Tira constantemente os óculos para as fotografias. Ninguém lhe pede nada para assinar. Somente fotos. Ela é toda sorrisos e palavras delicadas. Mesmo cheia de pressa, não diz que não a ninguém. Promete encontro (por aí) de tarde. 

Copyright: Isabel Worm

Copyright: Isabel Worm

Copyright: Isabel Worm

Copyright: Isabel Worm

Copyright: Pierre Aderne




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