No labiríntico hotel, tentando pela primeira vez não me perder, vou à
recepção avisar que deixei a minha mala no quarto. Agora que escrevo é que me
dou conta que escusava de ter feito isso in persona. Perderia
menos tempo e seria mais eficiente, se telefonasse. Recado dado, nada feito.
Tenho que voltar ao quarto para buscar a mochila porque tenho que fazer check
out e entregar a chave. Volto para os corredores labirínticos. Mal
saio, tenho que parar porque estão duas pessoas a impedir-me a passagem. Um é o
senhor que carrega as malas e a outra é ela. Felizmente, estão de costas e como
o chão é alcatifado, não dão por mim e eu espero, pacientemente, para retomar o
meu passo. Reconhecia-a imediatamente, mesmo de costas. Talvez pelo cabelo
muito curto. Aqui, hoje, não é (mais) uma diva. É uma pessoa normal. E como as
pessoas normais, está vestida como as pessoas normais a esta hora do dia. Um
blazer preto, uma camisa aos quadrados de flanela, jeans apertados e sapatos oxford camel.
A única coisa que é (mais) diferente nela é a brancura. Como ela é extremamente
branca. Mais branca do que pareceu ser em todas as outras vezes. Talvez pela
proximidade. De um branco que reluz. Na mão tem um pequeno saco de compras da
Gulbenkian com o que parecem ser um ou dois livros. Ela caminha pelo corredor
enorme, vira à esquerda e eu sigo, perdida mas à espera de acertar, em frente,
para o meu quarto. Pontualíssima para o evento que começa daí a 15 minutos.Como um dia escreveu Anabela Mota Ribeiro: "não é uma brasileira do samba, de
pele morena, de jeito dengoso. É uma mulher que conjuga o verbo flanar com
frequência. Que regressa a casa com as malas cheias de livros. E que gosta de
dançar no Lux e de ouvir fado em
Alfama. Imensamente requintada, sofisticada. Delicada". Subscrevo na totalidade.
As minhas questões, que não me abandonavam: Quem se lembrou de juntar estas
duas pessoas? E a segunda, por consequência era: Como é que ela aceitou o
convite? Nunca fui politicamente correcta, para o bem e para o mal.
Se a moderação, os convidados da mesma mesa, e/ou o público não forem
adequados, acaba por ser decepcionante. E eu que tinha (quase) a certeza que
seria, tive que fazer a prova dos nove. Pagar para ver. Então,
juntar uma cantora consagrada, que a maioria conhece (apenas) de cantar mas
desconhece as suas outras artes como escrever, compor, desenhar, compilar e o
excelso domínio da língua portuguesa. Um moderador que é praticamente
desconhecido, que eu desconfio que ninguém naquela sala conhecia, à excepção do
anfitrião (e algumas pessoas que se podiam contar pelos dedos de uma mão). E
finalmente, “o gajo que escreve cenas”, como o próprio se descreve e
parece gostar. Quem se define assim já não pode ser alguém cuja qualidade
literária é algo muito aprofundado. Ela tira um livro, um ipad, iphone, talvez
um caderno e um lápis. Os outros nada. Eu sei que deve haver algum lugar para o
improviso. Mas nada? Ela lê talvez dois poemas de amor do Fernando Pessoa.
“O gajo das cenas” é só piadas. Cita uma carta de amor, eleita a
melhor de todos os tempos, pelos americanos. O americano comum não é nenhum
sinónimo de qualidade. Com um humor tão fácil e tão popular. Tem a mania que é
engraçado. Um cita Machado de Assis e outro cita Johnny Cash. Se, pelo menos,
citasse Leonard Cohen ou Dylan. A necessidade de fazer rir toda a gente (mesmo
que não tenha piada nenhuma, para mim), um palhaço (no mau sentido da palavra).
E toda a gente se ri. Serei apenas eu que não tenho vontade de me rir? Será que
não tenho sentido de humor? Sou eu apenas que já não me consigo rir do que
não é sofisticado? Vende, dizem-me, um número inacreditável de livros por
semana. Um best seller, portanto. Mas seja lá o que isso for. Neste
país não é preciso grande coisa para se ser best seller. Não me
interessa escritores nem livros cujas citações que fazem são de Johnny Cash e
das músicas dos Clã e das escritas de Carlos Tê. Percebi hoje, finalmente,
o sucesso deste pseudo escritor. Pelo menos tem a noção que é ridículo.
"Gosto de ti como de arroz". Usa exemplos de de futebol. Que
vergonha, para mim, juntar estas pessoas à mesma mesa. Com tanto de tão bom em
Portugal. Mas sala está cheia para o ver. Essa é a verdade. A
plateia está cheia de gente muito produzida para esta hora da manhã e para
este dia da semana. Dirão que 97% são mulheres e 3% são homens.
Ela tenta em vão elevar o nível de discussão. Cita um verso de uma música
sua, cuja letra foi escrita pelo António Cicero:"Faço longas cartas para
ninguém". Nos tempos mortos, em que ouviu mais do que falou, rabiscou e
citou Oswald de Andrade: "Amor/ Humor". Termina a dizer que a sua
representação do amor é a palavra "revolução". Os exemplos de
cartas de amor que citou: as cartas que enviava para a avó quando chegou ao RJ,
as cartas que alguém na Central do Brasil quando não se sabe escrever.
Uma das coisas mais bonitas que ouvi, e a melhor intervenção, foi a
história de uma senhora que contou a história da avó que era analfabeta e que
aprendeu a escrever, já depois dos 40, para escrever cartas de amor para o avô.
O que me chocou foi o politicamente correcto do Luís
Osório, que supostamente pertence à elite, e que o elogiou dizendo que gostou
muito de o ouvir. Pois eu não. Lamento. E não tem nada que ver com muita gente
ler os livros dele e da maioria dos livros dele serem lidos maioritariamente
por mulheres. Tem que ver com cuidado, com profundidade, com a forma com que se
aborda a temática. Aquilo que se chama estilo. Uma forma de escrever. Eu quando
leio estou à espera de aprender, de melhorar, de me surpreender, de admirar.
Não quero ler e achar que eu poderia ou saberia fazer melhor. Não me interessa
uma literatura acessível, mediana, sem aprofundamento de nada, com um monte de
futilidades e banalidades. Estou farta desta conversa de
cosmética e circunstância, do desejo e necessidade que se tem, permanentemente,
de se evitar confrontos.
Nada tenho contra o pseudo escritor, que eu acharia
melhor definir como pessoa que escreve, não sei se livros. Simpatizei com a
pessoa. Não o achei pretensioso ou à espera de ser mais do que aquilo que é.
Achei-o genuíno e sincero. Sem pretensões.
Agora juntar estas duas pessoas foi um erro,
desculpem.
Não parece mais tão tímida como diz ser ou como dizem que é. Tira
constantemente os óculos para as fotografias. Ninguém lhe pede nada para
assinar. Somente fotos. Ela é toda sorrisos e palavras delicadas. Mesmo cheia
de pressa, não diz que não a ninguém. Promete encontro (por aí) de tarde.
Copyright: Isabel Worm |
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