Nos últimos tempos, várias pessoas
têm-me questionado sobre o meu (suposto) conhecimento literário. Essas pessoas,
muito mais das letras, ficam sempre muito surpreendidas com a minha cultura
literária e com a quantidade de coisas que já li e leio. Cada vez (mais) acho
que os estudos e os graus das pessoas dizem cada vez (menos) sobre elas. As
pessoas mais interessantes que conheci e conheço não se distinguem pelos graus
académicos. E muito menos lhes dão a importância que os outros (acham que) têm.
O que me desperta nelas é o interesse por qualquer coisa específica e, às vezes
na generalidade, a vida. Afinal o que é ser interessante? O que é ser
inteligente? E a importância que isso tem para a vida de cada um de nós? Mas
essas são questões que não vou falar neste texto.
Hoje vou escrever sobre duas pessoas da minha área de
conhecimento. Pessoas que dedicaram a
sua vida à medicina e ciência. E com os quais eu aprendi tanto. Um deles é
Siddhartha Mukerjee cientista, médico oncologista, professor, escritor sem
ordem alfabética e/ou importância. Ganhou um prémio Pulitzer com o livro que é
uma biografia magnífica sobre cancro The
emperor of all maladies. E o último livro é, o não menos interessante, Gene. É casado com a grande artista plástica
Sarah Sze e considerados o casal (mais) brilhante de NY pela Vogue. Para além disso, é giro e
inteligente. Como quase todas as grandes figuras, é tímido. Quando eu estava em
NY fui a todos os eventos, conferências, conversas só para o ouvir falar. E
vi-o (algumas vezes) à espera do metro na 168 e a sair do metro na W4. Só
olhar, discretamente para ele, sem que ele se apercebesse era uma maravilha. Um
dia num cocktail, com a coragem dada pelo álcool pedi-lhe entre um copo de
vinho, que me assinasse a versão inglesa do livro. Um meses mais tarde, numa
conferência sobre cancro, na qual só chegou em cima da hora e saiu mal acabou a
sua apresentação, corri para que me assinasse a versão portuguesa. Estas coisas
são como os novelos, pega-se na ponta e vamos desenrolando até conhecer (mais,
muito mais) mundo. Através dele conheci Primo Levi, do qual comprei e li toda a
sua obra. E por causa dele conheci a Emily Dickinson, essa grande poeta que
nasceu numa vila recôndita de Nova Inglaterra, da qual nunca saiu, não tinha
mundo e daquele cérebro saíram aqueles poemas dos quais os olhos tinham visto
tão pouco. Se é verdade que muitos dizem que escrever é autobiográfico, a obra
de Dickinson mostra exactamente o contrário. Mukerjee deu-me a conhecer outro
grande médico, escritor: Abraham Verghese, autor do livro My own country. Nascido na Etiópia, filho de pais indianos,
formou-se em Medicina na India e fez a especialidade numa das cidades da
America profunda no estado do Tennessee. Trabalhou dois anos em Boston onde o
vírus HIV começava a ser conhecido e a vitimar muita gente, no início dos anos
80. E depois, quando foi regressou a Johnson City viu uma outra realidade de
pessoas pouco instruídas e rurais infectadas com HIV. É desta experiência que
ele fala no livro que lhe deu popularidade.
A segunda pessoa que quero falar é de Paul Kalanithi.
Este, não conheci pessoalmente. Li uma das suas crónicas How long have I got left?, no The
New York Times, na qual assumia a sua condição de doente terminal. Tal como Siddhartha, era médico (a terminar a sua
especialidade em Neurocirurgia em Stanford). Tinha um Mestrado em Literatura Inglesa, era culto, competente, genial,
tinha um profundo amor à escrita e era um ávido leitor, tinha um futuro
promissor, e falou sobre tudo isso e muito mais, na sua autobiografia de fim de
vida que não chegou a terminar. O prefácio foi escrito por Abraham Verghese.
O primeiro capítulo começa com versos de T.S. Eliot e
com a descrição da sua confrontação com a imagem da tomografia que mostrava “inúmeros
tumores, a coluna vertebral deformada, o fígado completamente obliterado.
Cancro amplamente disseminado”. Neste livro descreve a sensação de se ter tornado doente e a sua vulnerabilidade. Das
diferenças abissais entre ser um médico cheio de confiança e um paciente
resignado.Os sinais premonitórios do cancro. O cansaço que o derrotava . As
dores intoleráveis. O futuro brilhante com que sempre sonhou, que teria como
neurocirurgião, evaporou-se num sopro. O marido e o pai presente em que
prometeu tornar-se, e cumpriu, mesmo que por tão pouco tempo e em condições tão
adversas. Do sonho que sempre teve de ser escritor. Da infância no Arizona. Das
ausências do pai médico. De ter lido 1984
de George Orwell. O seu amor pela linguagem. Antes de entrar na universidade já
tinha lido Edgar Allan Poe, Gogol, Dickens, Twain, Austen, Sartre, Shakespeare,
entre outros. Para um americano criado no interior da América e médico,
convenhamos que é invulgar. Durante a adolescência considerou os livros como
confidentes, que lhe deram a mais vasta visão do mundo e que lhe abriram
horizontes. Anos mais tarde tirou Literatura Inglesa e Biologia Humana. Queria encontrar a resposta
para a pergunta: O que dá significado à
vida? Por esta altura refere T.S. Eliot, Nobokov e Conrad como grandes
referências. Quando fez o Mestrado em Literatura Inglesa em Standford, referiu
a sorte que teve em estudar com Richard Rorty, o mais importante filósofo à
época. A tese de Mestrado foi sobre Walt Whitman. Passou uma temporada em
Cambridge, UK estudar História da Medicina, antes de entrar em Medicina em Yale.
Foi aluno de Shep Nuland, um reconhecido e reputadíssimo cirurgião-filósofo,
autor do livro sobre mortalidade How we
die.
Descreveu em pormenor
o primeiro nascimento que foi também primeira morte a que presenciou.
Ensinou-me o que é uma cirurgia Whipple
(duodenopancreatectomia) uma operação complexa que consiste na remoção da
cabeça do pâncreas, uma vez que o pâncreas se encontra na parte anterior e “coberto”
por varias estruturas, envolvendo rearranjo da maioria dos orgãos presentes na
cavidade abdominal.
Aprendemos tanto com este livro. Sobretudo sobre vulnerabilidade e humanidade, como andam de mãos juntas. Os médicos vêem as pessoas na sua forma mais vulnerável, assustados e o que há de mais privado neles. Depois, o seu talento
para a escrita e as suas referências literárias fazem lembrar-me da grande obra
de Tolstoi, Ivan Ilitch, com as
devidas diferenças. Tal como em Portugal, nos Estados Unidos, os médicos tendem
a escolher as especialidades menos exigentes (Ex. radiologia e dermatologia).
No fim do curso de Medicina tendem a focar-se em especialidades que
proporcionem uma melhor qualidade de vida, aquelas com menos horas de dedicação,
melhores salários e menor pressão. Como 99% das pessoas escolhem o seu
trabalho: quanto ganham, ambiente de trabalho e horas de trabalho. Neurocirurgia,
como há uns anos o Prof. João Lobo Antunes discutiu em alguns dos seus ensaios
sobre a mão, a perfeição do toque, a leveza da mão cirúrgica. Aqui Paul
compara-a quase à perfeição. A exigência desta especialidade da Medicina que
exige tanta técnica. A necessidade imperativa do treino da mente, das mãos e
dos olhos. Da necessidade não só de serem os melhores cirurgiões mas os
melhores médicos do hospital. As capacidades cirúrgicas são avaliadas pela
técnica e pela velocidade: “Aprende a ser rápido agora. Mais tarde aprenderás a
ser bom”. No bloco operatório todos os olhos estão sempre no relógio. Se o
tédio é, como argumentou Heidegger, a consciência do tempo a passar, então a
cirurgia é o oposto. Do conselho de comerem com a mão esquerda e de terem que
aprender a ser ambidestros. Aprendemos pequenas coisas como as funções básicas
que o hipotálamo regula: dormir, fome, sede, sexo. A loucura de trabalhar 100
horas por semana durante a especialidade. Viu muito sofrimento. O almoço típico
dele, como vi muitas vezes do Presbyterian em NY ou no Methodist em Houston:
Diet coke e um gelado. Escreveu sobre o receio que teve de se tornar o
estereótipo médico de Tolstoi: apenas preocupado com a forma de tratamento da
doença e desleixando a importância da parte humana. A excelência técnica não é
tudo. Como neurocirurgião, o seu ideal não era apenas salvar vidas – porque
todos acabamos por morrer – mas guiar os doentes e famílias a perceberem a
doença e a morte. Todas as grandes doenças transformam os doentes. Deve
tentar-se ser preciso, directo e certeiro mas deixar alguma margem para a
esperança. Cita Heidegger “a consciência do tempo a passar”. Ensina-nos que a
arte de falhar em neurocirurgia define-se por um ou dois milímetros: a ténue
diferença entre triunfo e tragédia. A existência de áreas no cérebro que são
quase sagradas ou invioláveis. Cita Montaigne: Se eu fosse um escritor iria
compilar descrições de várias mortes de homens: deveria ensinar como morrer ao
mesmo tempo que ensinaria a viver”. Descreveu ao pormenor as conversas com a
médica oncologista, de como não voltaria ao hospital como médico. De como
planeou tanto e esteve tão perto de conseguir. De como a oncologista se recusou a
discutir com ele as curvas de sobrevivência de Kaplan-Meier. [A curva de Kaplan-Meier é um método estatístico standard que mede a sobrevivência dos
pacientes em função do tempo. É a métrica que permite saber o progresso e que
podemos perceber a gravidade da doença. Por exemplo, no caso do glioblastoma a curva desce
vertiginosamente até que apenas aproximadamente 5% dos pacientes estão vivos em
dois anos]. De como no início da
confirmação de diagnóstico quis saber onde se encontravam os melhores
oncologistas de cancro do pulmão, das possibilidades do MD Anderson Cancer Center
– Houston e o Memorial Sloan Katering Cancer Center – NYC. Seis dias antes do
diagnóstico tinha passado 36 horas no bloco. Como tudo muda num instante.
Tornou-se um inválido. Os passos seguintes foram prepará-lo, e tudo à sua
volta, para a mudança abrupta de condição: de médico para doente. Com o passar
dos dias, com a repetição de exames, com a teraputica, até mesmo os médicos,
tão profundamente cientes da gravidade da sua condição, permitem-se ter
(alguma) esperança. Discute que a palavra hope
combina ao mesmo tempo confiança e
desejo. Somente 0.0012 % de pessoas com 36 anos têm cancro de pulmão. Paul
tinha planeado uma vida de 40 anos entre ser médico e escritor. Os primeiros 20
como neurocirurgião e os últimos 20 como escritor. Como tudo se precipitou por
causa do cancro terminal ele queria saber quanto tempo mais lhe restava para
tomar decisões relativamente à sua carreira: “Se tivesse 2 anos de vida,
escreveria. Se tivesse 10, voltaria à cirurgia”. Mas vida e morte não são uma
ciência exacta. Cita Darwin e Nietzsche. Houve uma melhora após 6 semanas de tratamento
com Tarceva. O cancro estabilizou. Voltou a ler literatura: Tolstoi, Kafka,
Montaigne, memórias de doentes com cancro, tudo o que tivesse relacionado com
mortalidade: “Foi a literatura que me trouxe de volta à vida durante esse tempo”.
Cita Hemingway, Beckett. Ainda voltou ao trabalho. Faria uma cirurgia por dia,
não acompanharia os doentes fora do bloco e não estaria on call. Ouvia bossa nova Getz/ Gilberto. O primeiro
caso foi uma lobectomia temporal, uma das suas cirurgias predilectas. Passou a
noite anterior a rever livros de texto de cirurgia e anatomia e todos os
passos dessa cirurgia. Descreve com uma beleza única como decorreu o
procedimento. Como Lobo Antunes referia repete a “forma mais elegante” de
proceder. Para se aguentar tomava antieméticos, Tylenol e anti-inflamatórios
não esteróides. “A morte pode ser um evento mas viver com uma doença terminal é
um processo... Se soubesse que me restavam 3 meses passava-os com a família. Se
fosse 1 ano escreveria um livro. Se me dessem 10 anos, voltaria e trataria
doenças. Mas a verdade é que viver um dia de cada vez não ajuda”. Tinham
passado 9 meses e operava até tarde ou até de amanhã. Chegava a casa tão
cansado que nem conseguia comer. Decidiram ter um filho. Engravidaram por
fertilização in vitro.
Repetiu a tomografia 7 meses depois
de voltar a operar. Seria a última antes de terminar a especialidade. Antes de
ser pai e de o futuro se tornar real. Apareceu um novo tumor, grande. Foi o seu
último de no hospital como médico. Começou a
quimioterapia. E com ela vieram os efeitos secundários: fadiga, fastio, vómitos, diarreia. Ler era impossível. Obrigava-se a comer. Foi internado para
ser hidratado por via intravenosa. As metástases ósseas causavam-lhe muitas
dores. Quase morreu quando a filha tinha 38 semanas. Esteve nos cuidados
intensivos uma semana. Perdera 20 kgs desde que fora diagnosticado, 7 deles
nessa semana horribilis. Cita Graham
Green. A filha nasceu. Tinha o desejo de viver tempo suficiente para que a
filha se lembrasse dele. O seu desejo não foi cumprido.
Morreu 22 meses depois de ter sido diagnosticado com um cancro de pulmão metastizado no estadio IV, aos 37 anos. Não terminou o livro.
Não teve tempo nem vida para o terminar. Chorei como uma Maria Madalena. Então no epílogo escrito pela mulher
Lucy, desfiz-me. Morreu no hospital 8 meses depois do nascimento da filha
rodeado da família.
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