Mísia elegantemente vestida com um vestido preto. Sobe ao
palco e senta-se numa mesa. Cabelo impecavelmente penteado. Os anos parecem não
passar por ela. Começa por agradecer à directora do Museu do Fado pelo convite para
esta residência artística. Apelida-a de
conversas com o público, com pessoas que não a conheciam ou para pessoas que
acompanham o trabalho mas que querem conhecê-la melhor. Enaltece a plateia, o
público, como lhe chama. Esse público, e essa interacção é que fazem que cada
concerto seja diferente. Realça que nesta conversa não falará sobre a história
nem sobre a evolução do fado. Considera que há gente muito mais preparada, muitos
musicólogos e muitas fadistas, como por exemplo, a Aldina Duarte que dominam o
assunto. Neste fim de tarde foi convidada “para falar de mim” o que é “estranho e
constrangedor” nas palavras da própria.
Nestes 25 anos de carreira profissional considera que o
corpo principal do seu trabalho foi a colaboração e interacção directa com os
escritores, poetas e compositores. Considera um privilégio ter poemas que foram
e são escritos especialmente para a sua voz. Contou a experiência de, antes de
cantar profissionalmente, ter tido 4 anos de aprendizagem numa casa de fado
onde cantava a Beatriz da Conceição – “a melhor professora que podia ter,
cantava com uma verticalidade, aquelas costas eram um fio de azeite... foi um
grande exemplo para mim, como ela tratava as letras, uma pessoa que não teve
grande instrução académica, tinha uma dicção inteligente, não fazia voltinhas,
não se tratava de fazer circo, nem performance, tratava-se de pôr cá fora o que
estava a sentir”.
Quando começou em 1991 o fado não estava na moda, não tinha
grande prestígio cultural nem comercial e não vendia. A excepção, segundo
Mísia, era a grande Amália – “a maior fadista de todos os tempos, para mim”. Concordo
absolutamente que Amália foi e é a maior de todas. Não só fadista mas também
intérprete e poetisa. Mas não nos podemos esquecer como Amália após a revolução
de Abril foi (quase) esquecida e ostracizada. Honra seja feita a Mário Soares
que a homenageou nos finais dos anos 80 nos apoteóticos concertos do
Coliseu. Isso devia ter sido um grande bálsamo para ela que como dizia “nasceu
para ser triste” e que no fado Grito de
despedida escreveu: “...que ao fim do além da vida/ do que já fui tenho sede/
sou sombra triste/ encostada a uma parede...”. O
fado, em geral, estava ainda com a marca do estigma do Estado Novo. No início
dos anos 90, quando Mísia dizia que queria cantar fado com aquela imagem
cosmopolita – de mini-saia, argolas enorme e cabelo à Beatriz Costa – as pessoas
diziam-lhe para cantar outra coisa. Mas ela foi perseverante e teimosa e achou
que o segredo era ter grandes nomes da literatura portuguesa a escreverem para
o fado. Sem falsas modésticas (porque a modéstia fica para quem dela precisa) referiu
que foi a primeira pessoa que convidou Jorge Palma, Sérgio Godinho, Vitorino ,
entre outros, a escreverem para fado. Aos grandes poetas, escritores e
compositores deve o repertório que tem. Tem como privilégio e uma das maiores
satisfações pessoais ter um poema, o único poema que se conhece, de Agustina
Bessa Luís – “essa grande escritora do norte” [e que tão mal tem sido tratada
pela sua editora que resolveu tirar os seus livros de catálogo e rescindir o
contrato por falta de vendas. É no que dá quando a arte deixa de ser um gosto e
um prazer e passa a ser números. O capitalismo no seu melhor. Agustina, pelo
que foi, pelo que é, não merecia um tratamento assim. Mas este país tem uma
memória tão curta]. Mísia, antes de cantar o poema de Agustina, desculpa-se
pela “bruta laringite”. Disse que não seria perfeito mas que seria muito
sentido. Que beleza tamanha. Mísia a cantar é de uma verticalidade
impressionante, como a “mestre” Beatriz da Conceição. Recta, hirta, com a
cabeça a apontar para o alto, olhos fechados, parece (até) mais alta. Tem uma
voz segura, imponente mesmo estando doente. Se não dissesse que estava com uma
laringite eu não adivinharia.
Voltou, uma vez mais, a enaltecer a importância e a
generosidade dos “seus” poetas, escritores e compositores em usar as palavras
deles. Falou de um episódio, numa tournée nos EUA, quando estava a dar uma série
de entrevistas e era difícil explicar-lhes a importância dos grandes escreverem
para o fado: “Era como se o Hemingway escrevesse para country music”. Nomeou, individualmente, cada autor que para ela
escreveu: Agustina, Lídia Jorge, Hélia Correia, José Luís Peixoto, Vasco Graça
Moura, Paulo José Miranda, Mário Cláudio e Saramago (acho que se esqueceu do
Tiago Torres da Silva). Explicou que cantou António Lobo Antunes mas que este
não escreveu especificamente para ela, mas para Vitorino. Os poemas que não
entraram no trabalho de Vitorino foram cantados por Mísia. É esta a verdade da
história. “Saramago é uma pessoa à parte. Gostava muito dele como pessoa e como
escritor. Ia começar a trabalhar com ele num projecto muito muito importante,
que quero ainda algum dia fazer. Na altura em que nos deixou e o projecto ficou
orfão”. Todas essas pessoas não tiveram medo de emprestar as suas palavras para
uma fadista, como a própria de autointitula, outsider, alternativa, na margem. Vasco Graça Moura fez 90% das
letras de um disco que era inspirado nas músicas de Carlos Paredes. Nos anos em
que esteve a viver em Barcelona, ouvia Amália e Carlos Paredes. “Não deixava
qualquer dúvida que eu era mesmo daqui. Mesmo sendo filha de mãe espanhola.
Tinha mesmo que voltar”. Vasco Graça Moura tinha uma grande intuição, erudição,
ele sabia música, sabia muito bem onde deviam estar as tónicas das palavras.
Outra das poetisas a quem recorreu foi Amália Rodrigues, um
caso raro de muitos talentos reunidos na mesma pessoa. Uma inteligência a cantar. Não
apenas a voz miraculada. “A voz é uma coisa que se nasce com ela. O que se faz
com ela é que é importante. Imaginem a Celine Dion” – disse entre risos. Referiu também a Amélia Muge, tendo sido a
primeira pessoa a pedir-lhe uma música. E a partir daí tornou-se uma figura
incontornável do fado. Não se esqueceu do episódio de o Vitorino aceitar
escrever “para uma louca” após ter saído da EMI-Valentim de Carvalho. O facto de ter tido sempre grandes autores associados à sua
música fez muitas vezes pessoas quererem aprender português e conhecer os
poetas que ela canta. “Metade Almodovar e metade Manuel de Oliveira”. A participação de todos estes autores no repertório de Mísia elevou o nível
do seu trabalho.
Cantou Ciúmes de um coração operário um poema que Vitorino
escreveu em 1992 que era o verdadeiro “novo fado”. E depois o poema de Fernando
Pessoa Autopsicografia com o fado Meia-noite. Apresentou os músicos “que tornam possível que este momento
esteja a acontecer”: André Dias na guitarra portuguesa (um músico da nova
geração que “tem as pestanas mais bonitas que já vi”), Didi na viola e Luís
Cunha no violino. Na primeira fila estava Mário Pacheco e Sandra
Correia. Alguns amigos que vêm de fora ainda os leva ao Clube do Fado.
Perguntou à plateia as horas e às 7:45, au point, senta-se sempre. Arrancou mais gargalhadas. “Estava
preocupada por não ter aqui um relógio e ia passar a hora de eu me sentar”. No
início quando actuava, cantava e ia embora e perguntava aos amigos “Notou-se
muito que sou filha de mãe espanhola?”. Somente pelo pânico de acharem que não
era uma verdadeira fadista. Hoje, não se preocupa mais, porque quem não a acha
uma verdadeira fadista não importa o que ela faça.
O melhor deixa-se para o fim. Apresentou a convidada como
sendo do seu coração. Convidada especial, também, do Artur (um dos gatos de
Mísia). Já colaboraram muito. Já escreveu um poema para um dos discos da Mísia.
Será a convidada no espectáculo de Mísia no CCB no dia 19 de Maio. “É com
imenso carinho, ternura e admiração que eu peço à Adriana Calcanhotto para se
juntar a nós”. Adriana que assistia na primeira fila, subiu ao palco casual chic
de óculos, com um casacão de lã cinzento, calças de ganga, sapatos oxford camel
e camisa aos quadrados de flanela cor de vinho e branco. Sentou-se. A viola não
parecia ser a dela. Ou pelo menos, não é a que tem usado nos últimos concertos
ou em Coimbra. Usou a piada do costume “passamos metade do tempo a afinar o
instrumento e a outra metade a tocar com ele desafinado”. Usou o iphone para o
afinar. Enquanto afinava foi explicando que não tem tocado e que adorou o convite para
tocar. Disse que aprendeu “horrores com esta mulher” sobre fado e sobre a
possibilidade de pegar num fado tradicional e colocar outro poema. Falou de ter
ficado escandalizada quando há uns tempos atrás lhe disseram que quando Amália
cantou Camões foi um escândalo. Mas considera que isso faz sentido, quando ainda
há quem fique escandalizado pelo Bob Dylan ter ganho o Nobel da Literatura.
“Apesar de a poesia existir antes da escrita”, citando o exemplo da Ilíada de Homero que seria para ser
transmitida oralmente. Depois, falou do poeta com o qual "tem mais intimidade,
não o que gosta mais" - Mário de Sá-Carneiro. E cantou a lindíssima Senhora dos
olhos lindos (que para mim é um fado).
Quando Adriana se juntou a Mísia na mesa foi recebida com um “Agora é um momento muito importante”: um prato de bolinhos de bacalhau. E Adriana às gargalhadas juntamente com o público. A Adriana em todos os concertos que sabe que a Mísia está ou quando lhe perguntam como conheceu a Mísia ela conta esta história. “Conta você. Eu gosto quando ela conta me imitando”. A Mísia tinha um namorado que era “um erro de casting” e por causa dele conheceu a Adriana. Quando chegou a Portugal fez o que todos os brasileiros fazem quando chegam ao hotel: ligar a tv ("fazia", corrigiu imediatamente Adriana, pretérito imperfeito, não mais). E viu um grande close up da Mísia a dizer "coisas insensatas". Ficou impressionadíssima com aquilo. E aí perguntou ao “erro de casting” quem era aquela cantora. E uma das características do erro de casting é que ele nunca assumia nada e disse apenas “Ah, eu conheço” (não disse que era namorado da Mísia). E aí combinaram ir ao Clube de Fado e a Mísia cantou para a Adriana. Como não se lembra nunca de almoçar ou jantar e como não tinha jantado pediu dois bolinhos de bacalhau porque era uma coisa fácil de comer. Aí comeu um bolinho de bacalhau e foi cantar. Quando regressou à mesa comeu o outro e a Adriana disse: “O segundo ela mereceu”. Esta conversa mostrou o humor e a cumplicidade destas duas amigas que são também grandes artistas mas que aqui estavam como em casa. “Quando ela canta me faz chorar e quando não está cantando faz-me chorar de rir”.
Quando Adriana se juntou a Mísia na mesa foi recebida com um “Agora é um momento muito importante”: um prato de bolinhos de bacalhau. E Adriana às gargalhadas juntamente com o público. A Adriana em todos os concertos que sabe que a Mísia está ou quando lhe perguntam como conheceu a Mísia ela conta esta história. “Conta você. Eu gosto quando ela conta me imitando”. A Mísia tinha um namorado que era “um erro de casting” e por causa dele conheceu a Adriana. Quando chegou a Portugal fez o que todos os brasileiros fazem quando chegam ao hotel: ligar a tv ("fazia", corrigiu imediatamente Adriana, pretérito imperfeito, não mais). E viu um grande close up da Mísia a dizer "coisas insensatas". Ficou impressionadíssima com aquilo. E aí perguntou ao “erro de casting” quem era aquela cantora. E uma das características do erro de casting é que ele nunca assumia nada e disse apenas “Ah, eu conheço” (não disse que era namorado da Mísia). E aí combinaram ir ao Clube de Fado e a Mísia cantou para a Adriana. Como não se lembra nunca de almoçar ou jantar e como não tinha jantado pediu dois bolinhos de bacalhau porque era uma coisa fácil de comer. Aí comeu um bolinho de bacalhau e foi cantar. Quando regressou à mesa comeu o outro e a Adriana disse: “O segundo ela mereceu”. Esta conversa mostrou o humor e a cumplicidade destas duas amigas que são também grandes artistas mas que aqui estavam como em casa. “Quando ela canta me faz chorar e quando não está cantando faz-me chorar de rir”.
Mísia, ao contrário do que aparenta não é distante nem
altiva. Tem um humor fenomenal. Tem em comum com Adriana o humor, a paixão pelos animais e o
gosto pela polenta frita de Porto Alegre. Adriana referiu que grandes poetas
partilham deste gosto pelos animais, por ex, Alexandre O’Neill, “poeta fetiche de Amalia”-
como lhe chamou, que escreveu sobre a pobreza da condição humana a partir dos
animais. MÍísia pediu a Adriana para cantar outro tema, do mesmo Mário de Sá-Carneiro. Falou do restaurante Petit Riche que frequentava em Paris, do qual era assíduo. Adriana
aproveitou para falar que Mário de Sá-Carneiro estudou Direito em Coimbra, obrigado
pelo pai. Nesses 3 meses ele viveu num quarto (que deveria ser uma pensão e não
um hotel). Adriana conta que quando foi convidada para passar o semestre em
Coimbra pediu: E se eu ficasse no quarto do Mário de Sá-Carneiro?”. E que toda
a gente a desaconselhou vivamente e a demoveram daquela ideia. “Podemos levá-la lá para ver o quarto
mas ficar lá não pode”. E ela continuava “Mas porque não pode?”. “Porque aquele
hotel paga-se por hora!”. Terminou com chave de ouro com O outro.
Soube a tão pouco. Não se percebeu a passagem do tempo. A plateia estava cheia. E atrás de mim
estava o temido Nuno Pacheco, crítico de música do Público. Para quem for de Lisboa estas conversas são imperdíveis. Vale por tudo. Vale
pela inteligência, pelo humor, pela conversa, pelas histórias por contar da persona Mísia. A
diva, essa, voltaremos em breve a protagonizar Geosefine no TAGV e a interpretar os seus poetas no palco do CCB.
Copyright: Mariola Landowska |
Copyright: Mariola Landowska |
P.S. Eu sei que as fotos não são o melhor mas foram as únicas que encontrei. Não tirei fotografias. Acho que a memória deve guardar tudo para sempre. A Adriana costuma dizer que "as pessoas fotografam mais quando gostam mais da música". Eu não, lamento, não consigo fazer (bem) duas coisas ao mesmo tempo. Perderia o momento único da interpretação e a fotografia ficaria, com certeza, péssima.
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