Uma formação na área
dos estudos artísticos, na área dos estudos brasileiros vindo do exterior da
Universidade. Muitos dos enchiam a plateia não eram alunos de Letras e nem da
Universidade de Coimbra A formação humanística e artística é essencial para a
formação integral de qualquer ser humano. O reitor que mais tempo
exerceu essa função, durante 31 anos, nasceu no Brasil. A honra de ser tratada
por “Professora” pelo Reitor da Universidade de Coimbra.
E ela, não desiludiu.
Apresentou-se, cerimoniosamente, de capa de Lente às costas. Começou por
agradecer a todos e a cada um pela honra de estar na Universidade de Coimbra,
como disse o Magnifíco Reitor é a “maior
Universidade brasileira fora do Brasil”. A primeira aula da “Professora”
Adriana Calcanhotto foi a falar sobre ela própria. A aula sobre a sua
trajectória que classificou como “a situação mais difícil de toda a minha
vida”. Uma coisa que disse não estar habituada, mas para quem a conhece e as
suas entrevistas, poucas novidades ou revelações foram ditas.
Nasceu em 65, em
plena ditadura no Brasil. Neta, filha e sobrinha de professoras. Não olha para
trás. Tem péssima memória, “uma gaffe
ambulante”. Nasceu no extremo sul do Brasil, Porto Alegre. Os pais
conheceram-se em Buenos Aires e ela nasceu meio ano depois disso. Pais muito
curiosos. Os pais ouviam música depois de jantar: pink Floyd, Piazzola, Miles
Davis. A mãe ouvia muita música instrumental e o pai o que queria descobrir.
Eram muito diferentes. O pai muito calmo e a mãe o oposto, “speed”. Tem um
irmão 3 anos mais novo. Ouvia rádio com as “babás”. Ouviam jovem guarda no
rádio. Um dia o pai chegou a casa mais cedo e ficou muito zangando, apavorado a
achar que a culpa era dele. A música que ela guardou na memória desse tempo foi
Devolva-me. Esta foi a primeira das
músicas que cantou nessa tarde. Pediu “paciência e compaixão” se acaso não a
soubesse tocá-la bem porque ultimamente anda “só lendo”.
Aos 6 anos, a avó
ofereceu-lhe um violão de nylon. Quando lhe perguntou o que faria com aquilo a
avó respondeu: “aulas”. O professor era apaixonado por João Donato e Tom Jobim,
ou seja, apaixonado por piano. “As teclas são outro mundo”. Para a mão de uma
criança de 6 anos aquilo era uma tortura. Abandonou o instrumento para mais
tarde voltar. Uns anos mais tarde retoma o violão e faz por impulso uma safra
de 30 canções expressando a sua infelicidade pela separação dos pais.
Uma tia, professora
de língua portuguesa, ofereceu-lhe o livro de Clarice Lispector A mulher que
matou os peixes. Este livro mudou-lhe a vida para todo o sempre. Sentiu-se uma
leitora e não uma criança. Este livro, por mais que se leia, e por mais vezes
que se volte a ele, parecerá a cada vez, novo e diferente. Sempre quis aprender
a ler porque achava que essa era a porta para o mundo adulto. Queria ser adulta
para não cumprir ordens. Aprendeu a ler sozinha. Acreditava que o mundo dos
adultos era diferente do das crianças, para melhor.
Falou da sesta da mãe
que era preciosa e da técnica magnífica que desenvolveu para lavar louça,
tarefa que adora. Ouvia rádio baixinho. E nesse tempo começou a ouvir outras
coisas diferentes das que ouvia com as babás. Vinícius de Moraes, por exemplo.
E achou aquilo diferente, não superior, mas diferente e pensou “Eu daria a
minha vida para ver isso acontecer”. Nessa época ouviu o poema Traduzir-se de Ferreira Gullar cantado
por Fagner. Foi a música que se seguiu. Ferreira Gullar, de quem veio a
tornar-se amiga, nasceu em São Luís do Maranhão. Sempre quis ser um poeta do
povo, um poeta acessível. Aprendeu unicamente português. Para ele, numa terra
longínqua, distante dos grandes centros urbanos, tudo chegava depois, demasiado
tarde. E por isso, para ele, a poesia era coisa de poetas mortos. Durante muito
tempo ele achou que os poetas não eram pessoa vivas. Augusto de Campos,
contemporâneo de Ferreira Gullar, era o oposto. Erudito, tradutor dos grandes
clássicos em várias línguas, cosmopolita de São Paulo. Adriana ouviu um poema de
John Donne traduzido por Augusto de Campos e musicado por Péricles Cavalcanti
na voz de Simone, chamado Elegia (que cantou à cappella). Esta foi uma
época áurea no Brasil onde era possível ouvir alta poesia através da música
popular.
A mãe ofereceu-lhe
uma assinatura mensal do “O círculo do livro” e através disso conheceu Oswald de
Andrade, o poeta modernista brasileiro da geração de 22. Um poeta irónico,
antropofágico, irrequieto, que não usava pontuação, que queria romper com as
convenções, que não gostava da ideia do Brasil ser uma colónia mas deslumbrado
por Paris. Falou de uma música de Caetano, Pulsar,
do disco Velô que se aproximava ao rap. Descobre Maria Bethânia dizendo
Fernando Pessoa.
Na juventude, no auge
do movimento punk no Brasil, havia os Secos
e Molhados no palco. “Quando o movimento punk chegou ao Brasil já nem havia
punk em Inglaterra”. “Todo o mundo era punk”. Pessoas loucas, maquilhadas,
estranhas. Andava com as roupas estranhas na rua que os outros usavam no palco,
“um bicho muito estranho”. Gostava da ideia e da possibilidade “eu não sei
fazer música mas faço”. Por volta dos 18 anos, depois de repetir o mesmo ano
quatro vezes, depois de não assistir às aulas, vivia de noite e dormia de dia, a
mãe fez-lhe um ultimato: “Então você sai da minha casa”. Da necessidade de
arranjar um trabalho, num restaurante por baixo de casa, o dono pergunta-lhe: “O
que você faz?” e ela “Eu não podia dizer que era estudante... então disse... sou
cantora”. Assim “nasce” a sua carreira na noite de Porto Alegre onde fazia cover de outros artistas. Mas o
interesse de Adriana não estava em “copiar” exactamente a versão de determinado
cantor, ela estava muito mais interessada em apropriar-se daquela música, em
fazer à sua maneira. A voz não era o interesse principal mas a performance. Gal Costa cantava com uma panela na cabeça para ouvir a própria voz “Óbvio, se eu tivesse aquela voz também faria o mesmo”. Para ela continuava a não fazer sentido a questão da alta cultura versus baixa cultura. Aí foi procurar um
director de teatro. E falou da questão de que se todas as artes desaparecerem,
haverá sempre teatro. Trabalhou com um director de teatro de vanguarda. Do seu
gosto por provocar vaias. Experiências loucas e liberdade extrema reunidas.
Todos os dias mudava. Sem querer agradar. Falou da coincidência de ser
contemporânea de outras cantoras: naquela época ela estava em Porto Alegre,
Marisa Monte no Rio de Janeiro e Zélia Duncan em Brasília. Sem internet e sem
saberem da existência umas das outras. Cada uma fazendo à sua maneira mas com
50% do repertório igual. Começou a levar o espectáculo para o circuito de
vanguarda de São Paulo. Provocou muitas vaias e tinha como objectivo não ser
belo, nem ser agradável. Chegou a cantar para uma pessoa, um crítico da revista
Veja: “fato de xadrês inglês, gravata
borboleta, óculos de tartaruga e bengala. E fiz o show como se estivesse
cantando para 10 mil pessoas”. Foi aí que contou o episódio que a Rita Lee
descreve na sua autobiografia sobre ela ter ficado nua para uma plateia, entre
muitas gargalhadas. A Rita Lee convidou-a para assistir à passagem de som. E a
Rita Lee falou que quando apresentava a banda de meninos, as meninas da plateia
gritavam de alegria e ela queria agradar também aos meninos. “Na
hora que eu faço o Miss Brasil 2000
gostava de apresentar uma menina que entrasse no palco só com uma capa. Você
conhece alguém que possa fazer isso?” ao que Adriana respondeu “Você se importa
que seja eu?”. Quando chegou a hora, Rita Lee apresentou-a, e ela que na altura
não era assim tão famosa mas conhecida o suficiente para as pessoas acharem que
ia entrar com um violão. Então ela entrou de saltos altos, nua só com uma capa, vai até à marcação no
centro do palco, abre a capa virada para o público, espera uns segundos, ficou
com pena dos músicos e deu uma canja para eles, fecha a capa e sai.
Maria Lucia Dahl,
actriz e cronista do Jornal do Brasil,
vê uma das suas actuações em que ela cantava uma versão de Caminhoneiro e oferece-se para ajudá-la no Rio de Janeiro. Fez uma
série de concertos no Mistura Fina (que
a elite carioca frequentava). Toda a gente desde a mãe, pai, família,
professora de canto, ao director de teatro tentaram dissuadi-la de ir: “Não vá,
você não está pronta”. Ela foi, mesmo assim. Aquilo foi um sucesso de concertos
esgotados. Caiu nas graças da elite carioca. Aí recebeu um convite de uma
gravadora para ser a “Marisa Monte” daquela gravadora. Naquela altura ela
continuava interessada na performance, na ironia, em provocar vaias. “Caí numa
cilada. Fazer um disco sem desejo de fazer um disco não vale a pena. Não façam
nunca isso em nenhuma situação”. Saiu um disco todo errado. Uma série de mal
entendidos. Não transmitia a ironia do palco. “Mas eu aprendi logo. A imprensa
acabou com a minha vida”. Ninguém queria
produzir o disco depois disso. A Folha de
São Paulo escreveu: “Há uma lacuna na música popular brasileira que só será
preenchida quando Adriana Calcanhotto voltar para o Rio Grande do Sul e
desistir de cantar”. Falou das dúvidas de empresários sobre a possibilidade de músicas
chamadas Esquadros e Mentiras fazerem sucesso e tocarem na
rádio. Como estas três horas eram para ser uma aula, Adriana relatou factos. “Eu
vim aqui mostrar como é difícil”. Citando Fernanda Montenegro quando a
questionaram sobre se é verdade que o começo é muito difícil: “Os dez primeiros
anos são muito difíceis, depois só piora”.
Continua sem gostar
de classificações e pretende continuar inclassificável. Coerente, portanto, com
o que diz há muitos anos. Há
uns 15 anos fiz-lhe a seguinte pergunta:
“Apesar das sucessivas comparações a que tem sido sujeita, principalmente com
Elis Regina, eu diria que a sua trajectória como excelente compositora
assemelha-se muito mais a Vinícius de Moraes pela erudição do vocabulário, pela
forma extraordinária como escreve poesia em língua portuguesa e pelo veículo
das palavras ser a música. Será que daqui a alguns anos a Adriana será definida
como uma grande poeta que fez canções maravilhosas? Era assim que gostaria de
ser definida?” Ao que ela respondeu: “Ana, eu detesto comparações (como
qualquer artista). Mas considero um grande elogio a analogia que você faz
com Vinícius, a quem amo muito. Na verdade, eu gostaria de ser indefinível,
inclassificável, hoje ou daqui a alguns anos”.
Fez um intervalo “ninguém
é de ferro a começar por mim” e
propôs-se a falar um pouco sobre a sua experiência de fazer discos para
crianças. Começou, após o intervalo, a falar sobre o lançamento das obras completas do
Mário de Sá Carneiro no Brasil, como isso se deu, e como ela se aproximou desse
universo. A partir daí começa a ser conhecida a sua ligação à poesia e a ser convidada,
cada vez mais, para eventos relacionados com isso. Começou a conhecer pessoas
conhecedoras dessas obras. Musicou poemas de outros poetas portugueses como
Fiama Hasse Pais Brandão. Falou, também, dos trabalhos Olhos de Onda a convite da Culturgest, Loucura a convite da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Das Rosas a convite da Universidade de
Coimbra. Falou também de como se cria de forma milagrosa um hit. Cantou Metade e Esquadros.
Seguiu-se a parte das
perguntas, que ela se sente particularmente apavorada quando feitas por
crianças. Sentou-se. Começou por responder sobre a razão da produção para
crianças. Foi uma ideia que foi amadurecendo aos poucos. Existia uma tradição
no Brasil de grandes autores escreverem especificamente para crianças (ex.
Manuel Bandeira, Cecília Meireles) com a mesma qualidade. Falou da novidade de
ter usado samples na altura da Fábrica do poema. De quando convidou
Hermeto Pascoal para participar numa música e de como ele fez música com uns
coelhinhos e uns baldes. E aquilo deu-lhe um click. Aquilo coincidiu com o assalto ao apartamento dela em que
todos os discos foram furtados. Como seria fazer música sem ter memória do som?
E essa Canção por acaso com o Hermeto
Pascoal fala disso: “Sem ordem/sem harmonia/ sem belo/ sem passado...”. A
partir daí começou a anotar canções e a pensar num projecto para crianças. Começou
a perceber que as crianças gostavam das músicas de Carlinhos Brown, por exemplo. Deixou essa
ideia amadurecer e decantar. E pensou na ideia de um heterónimo. Levou essa
ideia para a editora e achou que eles adorariam a ideia. Mas não: “Você não tem
um programa de televisão”. Falou do fenómeno de Fico assim sem você que as crianças chamam de Avião sem asa. Achou que era apenas um fenómeno no Brasil porque
coincidiu com a morte de um dos integrantes da dupla e só por esse acaso é que
ouviu essa música na rádio que era ouvinte. As crianças adoravam-no porque ele
tinha cara de boneco. Aí "a música alavancou o disco e as crianças começaram a
pedir o concerto". Mencionou que é possível que Partimpim apareça a qualquer momento “que ela
sai da caixa”.
Um estudante, que não teria mais do que 20 anos, falou de ter ouvido Metade numa novela quando era criança. E que não teria contacto com a sua música se não fosse por causa das novelas.
A outra pergunta fez lembrar-me uma cena do documentário José e Pilar de Miguel Gonçalves Mendes em que Saramago estava numa Feira do Livro no Brasil e um dos seus admiradores está tão nervoso para que Saramago lhe assine Viagem de Elefante e pede-lhe: "Saramago, me desenha um hipopótamo?". Neste caso uma estudante brasileira pergunta: "Na sua obra Partimpim você fala muito na sua relação com os gatos e eu vejo que as crianças têm muito mais relação com os cachorros e eu queria saber se você vai fazer alguma música sobre cachorros...". Adriana bem tentou disfarçar e controlar o riso, como toda a gente na plateia, e respondeu muito educada e diplomaticamente: "Ah sim, eu prefiro os gatos".
Terminou a falar que pretende aprofundar a relação do Brasil com a Universidade de Coimbra, considerando que a instituição portuguesa pode ajudar o seu país na educação,
que está a viver "uma tragédia anunciada. "Nós precisamos da Universidade de Coimbra, talvez, como nunca". O mais interessante desta
experiência, para ela “é contactar com os professores, assistir e dar aulas, e
sobretudo, frequentar as bibliotecas”. Cantou O outro (a pedido de uma estudante brasileira) e Fico assim sem você (para fazer chorar).
No seu estilo cool, (não) punk, como um
dia um crítico a classificou, talvez a definição que mais aprecia “apesar de detestar
classificações” e ser “inclassificável”. Para quem diz que é tímida e que o seu
maior talento não é falar, esta primeira lição foi uma maravilha, um
deslumbramento. Tivessem (todos) os professores este dom da palavra, este humor
e esta capacidade de cativar. Estivessem (todas) as aulas repletas como esta e
tudo seria melhor. Os professores, sim, têm muito a aprender.
Adriana doce, culta, apaixonada
por livros e que (ainda) compra discos. E prefere os gatos.
Promete para as
outras aulas, ainda mais entusiasmo, já que abordará assuntos que gosta de falar
e estudar.
Copyright: RUC |
Copyright: Sapo24 |
Copyright: Impala |
Copyright: Universidade de Coimbra
|
Sem comentários:
Enviar um comentário