Mais uma vez, António
Lobo Antunes (ALA), não escolheu o livro que escreveu. O livro é que o
escolheu. Não esperava voltar a África, mas não conseguiu. Estava mais
interessado na relação pai-filho. No entanto, (mais) um regresso a Angola, à
guerra colonial, que nunca poderá ser esquecido. Tudo o que está no livro é
verdade, nada foi inventado.Limitou-se a contar o que tinha vivido na guerra.
Como o próprio assume, foi um livro muito difícil e complicado de escrever. Passou
noites horríveis, ele que normalmente dorme bem, não tem pecados. Com sonhos
maus e uma angústia enorme. Tudo isso voltou. O sofrimento continua presente.O
sofrimento nunca mais acaba. “Ninguém desce vivo de uma cruz”. A guerra “deu
cabo da juventude, da nossa idade madura e da nossa velhice”. Uma crueldade
imensa. Ninguém ganhou esta guerra.
“Ajuda-me a esquecer”.
Neste livro, tudo
parece repetir-se. Mas tudo parece novo, ao mesmo tempo. Como se estivessemos a
ler estas histórias do mal que a guerra fez a tantos, pela primeira vez. Parece
um louvor à memória dos que morreram e dos que sobreviveram mas que parecem
continuar lá. O que a guerra lhes roubou, senhores. Não saíram da guerra. Quem
voltou de lá não voltou igual. Diferentes dos que cá ficaram.
“Fugidios, bruscos, quase todos estranhos...”. As marcas permanentes que a
guerra lhes deixou. A miséria da guerra. Sonhos permanentes com África que se
repetem. Os medos e os pavores. Os insultos velados e
explícitos. As imagens horríveis. A loucura. Os suicidas que se mataram sem
explicação. A vergonha de expressar sentimentos. Violência atroz. Pessoas sem
cabeça e sem orelhas. A ocultação da verdade inconveniente. Nunca contam o que
se passou na guerra. A mentira piedosa. Sonhos de guerra onde acordam suados e
exaustos.O medo, a vergonha e a ignorância de mostrar afecto, consolo e
carinho. Sempre a viverem no passado e da memória que lhes ficou. Culpa e
mágoa. A pena. A cabeça que não pára. Racismo. Machismo. Homofobia.
Homossexualidade. Sexo. Violações. Infidelidade. A consciência ou a falta dela.
Desânimo. Destruição.
Conta a história de um
alferes que trouxe uma criança da guerra de Angola. Tudo gira à volta da
matança do porco. Como em todos os
livros de ALA, não é o argumento que importa, este sempre simples, mas a
narrativa e a forma. Este é o segredo. Vários narradores, Prolepses e analepses.
Espirais. Polifonias. Narradores vários. Descrições cinematográficas.
Os personagens
raramente são bonitos. Os personagens quase todos sem nome: a filha, o filho
preto, o alferes, Sua Excelência, a viúva, a prima, Fernandinho. Na sua maioria tristes,
infelizes, melancólicos, mas todos
com uma sensibilidade acima da média.
O filho preto que
trouxe de Angola depois de lhe matar a mãe e o pai. Todos o avisam que quando
crescer se vingará. Foi trazido por solidão ou remorso? Por amor ou como um
troféu? Casou-se, num casamento infeliz, com Sua Excelência, uma branca que o
despreza e o troça. Humilde.
Subsidiário. Obediente.Desde o início há um presságio que o filho matará o pai
no dia da matança do porco: “Lembro-me da minha mãe sem orelhas...Lembro-me do
meu pai de bruços no chão... Lembro-me que você os matou... matou a minha mãe,
matou o meu pai, destruiu tudo o que pôde e no entanto passou-lhe uma coisa
qualquer por dentro que o obrigou a impedir que me matassem... juro que não me
apetecia matá-lo, gostava dele...”.
A filha “sempre
zangada, amarga, fala-se-lhe e não responde, sorrimos-lhe e permanece séria”. Sempre
sozinha. Indiferente. Mais esquiva do que os gatos. Largou os estudos. Ninguém
nunca a questionou, obrigou, aborreceu. Quis largar os estudos, largou.
Aceitaram sempre. Nunca lhe ralharam. “acho que não gosto seja de quem for, de
que criaturas podia gostar e de que serve gostar, o que se faz com gostar, o
que se ganha em gostar...”. Drogada. Ressacada. Descuidada.
A mulher sempre discreta em tudo desde o primeiro dia.
Tímida. Educada. Sem aborrecer ou incomodar ninguém.
Começou a sofrer de guinadas no rim. Descreve tão bem a dor com imagens.
Descrições cinematográficas. “pedras no rim a comerem-na sem descanso com
aqueles dentinhos horríveis, a alcançarem-lhe o fígado...é o sangue a
apodrecer, é o corpo que desiste... As pedras no rim que se tornavam a pouco e
pouco mais leves do que a água. Um
cancro no rim que lhe invadiu o corpo inteiro..A degradação com a doença. O
sofrimento. O declínio. A agonia. A morte a chegar.
Todos os personagens
partilham desta falta de amor, uns porque têm medo de o mostrar, outros porque
não o sabem fazer, outros porque não foram ensinados, outros porque acham que
não foram (de todo) amados. Quem sabe um livro sobre este medo?
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