quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Até que as pedras se tornem mais leves do que a água

Mais uma vez, António Lobo Antunes (ALA), não escolheu o livro que escreveu. O livro é que o escolheu. Não esperava voltar a África, mas não conseguiu. Estava mais interessado na relação pai-filho. No entanto, (mais) um regresso a Angola, à guerra colonial, que nunca poderá ser esquecido. Tudo o que está no livro é verdade, nada foi inventado.Limitou-se a contar o que tinha vivido na guerra. Como o próprio assume, foi um livro muito difícil e complicado de escrever. Passou noites horríveis, ele que normalmente dorme bem, não tem pecados. Com sonhos maus e uma angústia enorme. Tudo isso voltou. O sofrimento continua presente.O sofrimento nunca mais acaba. “Ninguém desce vivo de uma cruz”. A guerra “deu cabo da juventude, da nossa idade madura e da nossa velhice”. Uma crueldade imensa. Ninguém ganhou esta guerra.

 “Ajuda-me a esquecer”.
Neste livro, tudo parece repetir-se. Mas tudo parece novo, ao mesmo tempo. Como se estivessemos a ler estas histórias do mal que a guerra fez a tantos, pela primeira vez. Parece um louvor à memória dos que morreram e dos que sobreviveram mas que parecem continuar lá. O que a guerra lhes roubou, senhores. Não saíram da guerra. Quem voltou de lá não voltou igual. Diferentes dos que cá ficaram. “Fugidios, bruscos, quase todos estranhos...”. As marcas permanentes que a guerra lhes deixou. A miséria da guerra. Sonhos permanentes com África que se repetem. Os medos e os pavores. Os insultos velados e explícitos. As imagens horríveis. A loucura. Os suicidas que se mataram sem explicação. A vergonha de expressar sentimentos. Violência atroz. Pessoas sem cabeça e sem orelhas. A ocultação da verdade inconveniente. Nunca contam o que se passou na guerra. A mentira piedosa. Sonhos de guerra onde acordam suados e exaustos.O medo, a vergonha e a ignorância de mostrar afecto, consolo e carinho. Sempre a viverem no passado e da memória que lhes ficou. Culpa e mágoa. A pena. A cabeça que não pára. Racismo. Machismo. Homofobia. Homossexualidade. Sexo. Violações. Infidelidade. A consciência ou a falta dela. Desânimo. Destruição.

Conta a história de um alferes que trouxe uma criança da guerra de Angola. Tudo gira à volta da matança do porco. Como em todos os livros de ALA, não é o argumento que importa, este sempre simples, mas a narrativa e a forma. Este é o segredo. Vários narradores, Prolepses e analepses. Espirais. Polifonias. Narradores vários. Descrições cinematográficas.

Os personagens raramente são bonitos. Os personagens quase todos sem nome: a filha, o filho preto, o alferes, Sua Excelência, a viúva, a prima, Fernandinho. Na sua maioria tristes, infelizes, melancólicos, mas todos com uma sensibilidade acima da média.

O filho preto que trouxe de Angola depois de lhe matar a mãe e o pai. Todos o avisam que quando crescer se vingará. Foi trazido por solidão ou remorso? Por amor ou como um troféu? Casou-se, num casamento infeliz, com Sua Excelência, uma branca que o despreza e o troça. Humilde. Subsidiário. Obediente.Desde o início há um presságio que o filho matará o pai no dia da matança do porco: “Lembro-me da minha mãe sem orelhas...Lembro-me do meu pai de bruços no chão... Lembro-me que você os matou... matou a minha mãe, matou o meu pai, destruiu tudo o que pôde e no entanto passou-lhe uma coisa qualquer por dentro que o obrigou a impedir que me matassem... juro que não me apetecia matá-lo, gostava dele...”.

A filha “sempre zangada, amarga, fala-se-lhe e não responde, sorrimos-lhe e permanece séria”. Sempre sozinha. Indiferente. Mais esquiva do que os gatos. Largou os estudos. Ninguém nunca a questionou, obrigou, aborreceu. Quis largar os estudos, largou. Aceitaram sempre. Nunca lhe ralharam. “acho que não gosto seja de quem for, de que criaturas podia gostar e de que serve gostar, o que se faz com gostar, o que se ganha em gostar...”. Drogada. Ressacada. Descuidada.

A mulher sempre discreta em tudo desde o primeiro dia. Tímida. Educada. Sem aborrecer ou incomodar ninguém. Começou a sofrer de guinadas no rim. Descreve tão bem a dor com imagens. Descrições cinematográficas. “pedras no rim a comerem-na sem descanso com aqueles dentinhos horríveis, a alcançarem-lhe o fígado...é o sangue a apodrecer, é o corpo que desiste... As pedras no rim que se tornavam a pouco e pouco mais leves do que a água.  Um cancro no rim que lhe invadiu o corpo inteiro..A degradação com a doença. O sofrimento. O declínio. A agonia. A morte a chegar.

Todos os personagens partilham desta falta de amor, uns porque têm medo de o mostrar, outros porque não o sabem fazer, outros porque não foram ensinados, outros porque acham que não foram (de todo) amados. Quem sabe um livro sobre este medo?





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