Ponham os olhinhos no FOLIO, senhores! Ainda dizem
que a cultura de alta qualidade não vende.Um evento de 10 dias à volta dos
livros. Uma vila, no interior de Portugal, num país que se diz ler pouco e
todas as sessões estão cheias e os eventos, mesmo os pagos, estão esgotados. O
povo é aquilo que se lhes dá. Eu e a maioria das pessoas presentes no Folio foram
propositadamente. Qual a receita do sucesso?
Fico a saber que o Presidente da Câmara Municipal de
Óbidos é do PSD. O partido que muitas vezes nos seus governos aboliu o
Ministério da Cultura. Incluindo o último, de Passos Coelho, que foi só tiros
nos pés. Até o acervo do Miró queriam leiloar. Ou seja, as decisões culturais
dos políticos não são ideológicas. Há por aí muito boa gente que diz que não
precisa de estudar nem ler nada para além do seu trabalho porque já aprenderam
tudo o que deviam quando foram alunos na Faculdade. Que visão mais redutora do
mundo. Que pequeno o mundo que lhes vai na cabeça. Que falta de pensamento.
Mas, isso, são outros quinhentos.
O que me fez
ir, não vou mentir, foi o programa. Primeiro o Salman Rushdie com a Clara
Ferreira Alves. E depois, o Camané a cantar Jobim. Apesar de, para este último,
já não ter conseguido bilhetes. Tirei o meu último dia de férias para ir e
conseguir chegar a Óbidos às 9. A conversa de Rushdie com Clara Ferreira Alves
teve que ser mudado de lugar. Da tenda de autores para a tenda de concertos.
Acho que a conversa não poderia ser conduzida por ninguém mais habilitada. Quem
melhor do que Clara Ferreira Alves para conversar com Salman Rushdie? Ela que é
uma enciclopédia ambulante. Que domina e conhece o islão, o Médio Oriente, a
fatwa, terrorismo, EUA, NY, Londres. Sobre isto e muito mais se falou nesta
noite. E que escreveu um livro magnífico sobre estes assuntos. Eu diria que o
humor e a ironia são as características deste escritor. Ao contrário de muitas
outras vedetas do seu calibre, este não é tímido, é solícito e ri-se de si
próprio. É talvez a única pessoa de origem indiana que conheci simpática, não
querendo generalizar. Apelidou a religião de non sense. Referiu-se a Madre Teresa de Calcutá sobre ser o oposto
de uma santa. E apelida o ex-Papa de “Eggs Benedict” Falou-se
da sigla ISIS
que há uns tempos ninguém conhecia: “era apenas o nome de uma deusa egípcia, ou
de uma mercearia na rua onde vivo, em Nova Iorque. Falou de quanto é feliz por viver em NY.
Clara perguntou-lhe onde se sentia em casa ou aonde é que ele pertencia. Ao que
respondeu que sempre se sentiu pertencer muito mais a cidades do que a países.
Gosta de livros que o façam
pensar. Falou que grandes livros não mudam necessariamente o mundo. Deu como
exemplo o “Moby Dick”, um colosso que segundo ele nem a pesca mudou.
No dia seguinte
acordei relativamente cedo, para ser sábado. Fui comprar o “Expresso” em frente
ao hotel e cruzo-me com o grande Luís Miguel Cintra. Nunca o tinha visto fora
do palco. Passei a manhã a ver todas as livrarias de Óbidos: Mercado, Adega...O
saco de pano que muitas pessoas usavam era ridiculamente caro. Nem um saco
destes na Strand custa o mesmo.Almocei num dos restaurantes na rua principal.
Comi muito bem, bebi melhor.
Copyright: Folio |
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Ao fim da tarde tive
uma das grandes surpresas, talvez pela ausência de expectativa: a “Casa Cais”.
Luana Carvalho (que eu não conhecia, como é possível), Alice Sant’Anna (que eu
conhecia do livro “Rabo de Baleia” que trouxe de São Paulo), Pedro Sá (o grande
músico da banda Cê e um dos grandes responsáveis pela modernidade dos últimos discos
de Caetano) e Rafael Rocha. Pedro Luís, na plateia fez uma participação especial.
Anabela Mota ribeiro apresentou-os, lendo “excertos” do grande livro “Memórias
Póstumas de Brás Cubas do não menos grande Machado de Assis. A delicadeza de
Alice Sant’Anna a ler excertos do seu livro “Rabo de baleia” cujas palavras
mais repetidas foram: baleia e Japão. E os variadíssimos nomes para a mesma cor
usados no Japão. Mostrou ainda talento para cantar. Luana Carvalho, filha da
mãe Beth, mostrou que o talento é genético. Até o cenário era inspirador. Uma laranjeira em que se viam as folhas a cair. O passar do tempo, como a vida. Que acontecimento este. Foi tão bom
mas tão bom. Ficou a memória e a vontade de ver de novo. “Que lindeza tamanha”,
como nas palavras de Régio.
Copyright: Anabela Mota Ribeiro |
À noite, o grande
concerto de Camané a cantar Tom Jobim. Uma verdadeira utopia neste registo. Indescritível
de tão lindo e emocionante.
Copyright: Anabela Mota Ribeiro |
No último dia houve ainda uma leitura encenada dos solilóquios de Hamlet — “como queiram de William Shakespeare” —, coordenada por Beatriz Batarda e e
por alunos e ex-alunos dela. Este para mim, foi o outro grande momento do
festival. De uma delicadeza, força, verdade e excelentes interpretações. De
encher a alma e o coração. Beatriz Batarda, uma excelente professora e uma das
maiores encenadores e actrizes da sua geração. Que para além de tudo, é muito
gira. Palamas para ela, muitas e para os alunos que ajuda a formar. Enquanto
houver actores desta qualidade existirá sempre público.
Copyright: Folio |
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Dos dois curadores só conhecia a Anabela Mota
Ribeiro e José Eduardo Agualusa. O último não vi. A Anabela estava
omnipresente. Todos os eventos que fui, lá estava ela. Sorriso aberto e abraços
e beijinhos para todos os conhecidos. A felicidade era visível. Foi através dela
que conheci o festival e não poderia haver melhor divulgadora. O seu
entusiasmo e alegria foram contagiantes. Que qualidade de programa e que
orgulho. Palmas e elogio, por isso, para ela.
Há coisas a
melhorar, claro. Como as acessibilidades. O Comboio Literário foi uma excelente
iniciativa. Falta melhorar os transfers da estação de comboios para a vila e
criar um Comboio Literário desde o Porto (o norte também existe, e passar o dia
entre aviões e comboios só com muita vontade mesmo). Mas não me arrependi. Tudo
valeu muito a pena. Superou todas as minhas expectativas. O tempo ajudou. A
organização magnífica, o cenário condizente. Tudo beirou a perfeição. Memórias
muitas e já penso na vontade de voltar para o ano. Para mim, foi um verdadeiro
acontecimento.
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