No livrinho que nos deram à entrada tinha um texto da
Adriana:
“Adoro o palco da Culturgest.
Nunca vou esquecer do meu primeiro concerto em Lisboa, sozinha com minha
guitarra e uma audiência mágica, em Outubro de 2000. Na primeira noite caí de
amores pela cidade, e por Portugal, dentro dela. Naquela noite fiz amigos queridos
e é tudo nítido e intocado na minha memória, em geral bem turva. Naquela noite
entrei em Portugal, ou Portugal entrou em mim, vá lá, para sempre, a porta de
entrada sendo o convite da Culturgest, por António Pinto Ribeiro. Lembro que no
camarim, em um carrinho, haviam garrafas de guaraná do Brasil sem que ninguém
houvesse pedido e aquilo me comoveu logo antes de entrar em cena. Lembro também
de sentir mais frio do que imaginava. Lembro sobretudo do frio na barriga antes
de entrar no palco, que de algum jeito dura até hoje.
De modo que quando recebi o
convite para me apresentar no mesmo formato solo, nas comemorações de vinte
anos da casa, disse sim na mesma hora. Não tinha um concerto preparado, não
tocava há muito, não saberia se conseguiria e até aqui, sinceramente, não sei,
mas por isso mesmo. Andava doida para retomar a guitarra, portanto para
inventar um roteiro pensado para Portugal, para pegar a estrada, pela janela do
quarto, pela janela do carro, trancafiada em quartos de hotel enquanto Portugal
está lá fora, tocando compulsivamente para que o concerto seja lindo e
inesquecível como só em Portugal pode ser, enfim, o novo convite da Culturgest
era tudo o que mais eu podia querer no momento em que ele chegou. Depois pegar
a estrada seca, com Diogo ao volante, comer doces de ovos em Aveiro, partir
atrás de baleias açoreanas, ir ao Fado e acordar inchada na manhã seguinte para
dar entrevistas sem parar, me emocionar cantando meus poetas amados para as
pessoas, pensando bem, o que mais alguém poderia querer?(...) Fiz turnês
solo, pela Europa, toquei na África, no jardim das esculturas do MoMA, no
complexo do Alemão no Rio, em salas antigas, em salas míticas, em ginásios, em
espeluncas. Foi sempre assim, tomando e retomando, que convivemos, o
instrumento fora de moda no Brasil, e eu.
A retomada desta vez deve-se ao
fato de que precisei parar de tocar, o abandono desta vez foi obrigatório, por
conta de uma lesão chatinha na mão direita. Exatos um ano e seis meses sem
poder tocar sendo que no justo momento em que deveria sair em turnê com O micróbio do samba, punhado de
canções que compus e gravei, adivinhem, na guitarra. O óbvio, que seria então
não fazer os concertos do álbum, acabei não conseguindo, já que não tive
coragem de cancelar os três concertos portugueses agendados e eles acabaram
gerando o Micróbio
vivo e o resto é lenda.
No mais, como sempre digo, no
meu ofício quem comanda são as canções, e não me debato com isso. Gosto, aliás,
de ser levada por elas. Então nunca tenho a menor pretensão de ser coerente com
um alinhamento adiantado, adiantando que ando tocando aquelas das quais estava
com muitas saudades, algumas das quais havia até esquecido, algumas do micróbio do samba, algumas das quais
tenho inveja porque gostava de as ter escrito, algumas que escrevi mas foram
gravadas por outros artistas, poemas que musiquei, e alguma coisa nova que
ninguém é de ferro. Olhos de
onda, por exemplo, que batiza o alinhamento, qualquer que ele
seja, fiz enquanto ensaiava. Além de inaugurar nova safra, o que sempre é
motivo de alegria, a canção ajudou a dar o norte do recital. Constatei quando
essa canção nasceu que as outras já estavam também falando do que ela fala e da
língua portuguesa e do mar da língua e por aí vai.
De tudo um pouquinho, como a
receita da felicidade, deixando sempre aberto o espaço para poetas que me
apareçam e para novas canções que podem sempre me arrebatar mais perto da hora
ou que podem ser escritas no camarim, sacrificando para isso certezas absolutas
no repertório, tudo é possível, graças aos deuses.
Aqui estamos, eu, a guitarra e
algumas canções que adoro, nos reencontrando, como se fosse a primeira vez, nos
encontrando pela primeira vez quando é o caso, desejando viver mais uma noite
"daquelas", no palco querido da Culturgest, antes de por o pé na
estrada, enfim. Importante é que aquele frio na barriga antes de entrar no
palco sozinha com minha guitarra, permanece, se não aumentou e foi para isso
que vim”.
Quem escreve assim, como não
esperar o melhor?
Dizem que não há concerto como o primeiro. Começo a
acreditar que é verdade. A primeira vez
que vi a Adriana foi há muitos anos, em 2000 ou 2001 no dia 1 de Portugal (24
de Junho), em Guimarães. Estava um dia de calor que tudo parecia derreter. Eu
não conhecia o trabalho dela e fiquei a gostar nessa tarde e nessa noite. Tocou com o António Chaínho e mais um
violoncelista e um percurssionista. O concerto foi na Praça de Santiago e enche
para vê-la.
Hoje passados mais de 10 anos, a receita voltou a ser quase
a mesma. Entra elegantemente vestida de vestido azul petróleo a cobrir-lhe os
pés e cabelo preso. Achei o concerto melancólico ou eu é que estou “tão à flor
da pele que qualquer beijo de novela me faz chorar”. Apeteceu-me chorar várias vezes. Mas tinha um
gajo a ressonar ao meu lado, com a cabeça tombada quase a tocar-me no ombro.
Eu, a um metro de distância do palco, passei o tempo envergonhada porque achei
que a Adriana ouvisse e visse aquelas figuras.
O alinhamento do concerto, segundo a própria, foi escolhido
propositadamente para a estreia em Lisboa. Os dois poemas de Sá-Carneiro “O
outro” e “Vislumbre”, não podiam ser esquecidos. Cantou a novíssima “Olhos de
onda” que dá o nome ao espectáculo. Canta outra quase desconhecida “Maldito
rádio” com um “ajudante” a mudar de estação enquanto ela toca. Não se esqueceu
das mais conhecidas "Inverno", “Esquadros”, “Mais feliz”, “Vambora”. O encore terminou
triunfalmente ao som de “Fico assim sem você “ e “Maresia” (na qual ela solta o
cabelo e um ventilador simula o vento vindo do mar). A Adriana, com quase 48
anos mostra que é como o vinho do Porto.
Eu cortaria o cabelo....mas ela é quem sabe!
Copyright: Hiromi Konishi |
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