Ontem, depois de um dia repleto de
ciência e de ideias novas, rumei ao Porto para a Biblioteca Pública, ao Jardim
de São Lázaro. Jantei num daqueles restaurantes turísticos com esplanada. Nem
precisei de ementa, vi no quadro riscado a giz que tinham sardinhas e foi
exactamente o que pedi. Entretida com as azeitonas, que são a minha perdição,
enquanto esperava pela comida, lia "A
descoberta do Mundo", um livro com todas as crónicas publicadas de Clarice
Lispector. Quando as sardinhas chegaram, só pelo aspecto percebi que estava
perante uma avaliação semelhante ao "Ramsay's Kitchen Nightmares". Sardinhas não têm segredo, basta serem assadas em carvão e serem
frescas! Aquelas não. Tudo estava errado. Vamos lá. Vinham 3 sardinhas assadas
no forno (!!!), mergulhadas em azeite fervilhante, com batatas a murro mergulhadas
no mesmo, pimentos e cebola crua em rodelas que pareciam imitar as dimensões de
rodas de camião. Abro a primeira, a medo, e percebo o que temia. As sardinhas
estavam cruas no interior e (espantem-se) congeladas!!! Como tinha 15 minutos
para jantar, decidi não fazer uma cena. Porque feliz como estava, não havia
sardinhas que pudessem estragar isso. Mas para continuar a avaliação, prossegui
a avaliação... As batatas eram apenas cozidas com casca e o pimento era daquele
de conserva!!!! Nem fixei o nome do restaurante, mas sardinhas desta qualidade
envergonham uma cidade com mar!!! Adiante. Segui para a biblioteca a pensar que
já estaria atrasada e percebo a longa fila, à distância. Sabem quanto tempo
esperamos para entrar: 30 minutos!!!
Mas nada, até mesmo a espera, ia fazer-me
acabar mal o dia! Sentei-me, numa das poucas cadeiras livres, e a leitura
começou já passava das 10 da noite, quando estava prevista para as 10:30.
Diogo, surge no andar superior de fato cinzento escuro e camisa preta, com
aquela voz espantosa. Sou sensível a vozes. Acho que o Diogo tem a melhor voz
masculina de Portugal. Linda, linda, linda. Pelo contrário, acho a voz da
Fernanda Câncio insuportável. Coitada, ela não tem culpa, mas aqueles agudos
são intoleráveis. Não consigo ouvir a senhora. Pouco depois, Diogo desceu, com
o seu ipad, despiu o casaco, e continuou a leitora. Que sorriso lindo o dele!
Está ligeiramente mais gordo, grisalho, mas acho que ainda melhor! A idade só
lhe faz bem!
Este "Sermão de Santo António aos Peixes", de 1654,
escrito pelo Padre António Vieira não podia ser mais actual. Critica a
prepotência dos grandes que, como peixes, vivem do sacrifício de muitos
pequenos, os quais "engolem" e "devoram". É um texto que foi dito em São Luís do
Maranhão, repleto de ironia, e agudo senso de observação sobre os vícios
e vaidades do Homem, comparando-o através de alegorias, aos peixes. Vos estis sal terrae (Vós sois o sal da terra).
Diogo a exaltar-se em latim fica ainda melhor. O efeito do sal é
impedir a corrupção: «...Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra
se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a
verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo
verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não
salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não
deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o
que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a
Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir
a Cristo, servem a seus apetites(...) Enfim,
que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os
peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam(...) Olhai, peixes, lá do mar para a terra.
Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o
sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só
os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais
se comem os Brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar,
vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer
as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo
aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer.
Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e
comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os
legatários, comem-no os acredores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos
defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador
que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a
mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe
tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre
defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra. Já se os homens se
comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria
de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade,
considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós(...) Vede um homem
desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos
o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão,
come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a
testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido.
São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os
corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está
executado nem sentenciado, e já está comido(...) Antes, porém, que vos
vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas
repreensões. Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A primeira
cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros.
Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos
comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo
contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande
para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem
pequenos, nem mil, para um só grande..».
Um texto de 1654 que não
perdeu a actualidade. O Brasil, país onde foi pregada pela primeira vez, luta
nas ruas contra a corrupção. Nós, por aqui, lutamos por uma sociedade mais
justa e esperamos, pelo menos, que a lei do enriquecimento ilícito, contra a
vontade dos que nos representam, seja aprovada!
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